South America Latin America

Bolivia - Carlos Crespo

Bolivia - Casimira Rodriguez

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Casimira Rodriguez: Pero bueno… cómo me he involucrado con las organizaciones. La propia situación de aquellos años, estamos hablando de unos 35 años atrás cuando empiezo a entrar a la lucha. Tal vez, mi situación era totalmente diferente, ¿no? Yo trabajaba en una casa y en aquellos años todavía le decían a la empleada doméstica “sirvienta” ¿no? Un día, encuentro yo a otras personas, digo yo, otras compañeras, una trabajadora del hogar que me invitó… De niña yo he aspirado a ser costurera, entonces, porque, en el campo nunca se sabe que profesión voy a tener, nada, no se piensa, no se hace, solamente los niños crecen y su mamá es madre de familia, y su papá es minero o agricultor. No sé en qué rato escuché que su hija era costurera y dije: “pucha, bonita profesión”, entonces, “quiero ser costurera”, y al final de niña soñé eso y me olvidé.

Bolivia - Leonilda Zurita

Bolivia - Rafael Puente Calvo

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Itxaso Arias: La entrevista es un poco como lo que te envié1, ¿recuerdas? Ver un poco el contexto de todo este movimiento antiglobalización, la historia de la AGP y comentar sus líneas que marcan más el sentido que se le da a la acción desde la AGP y luego ya centrándonos en Bolivia, en este momento histórico que consideran que tocaría hacer en relación a los movimientos sociales. Este sería el recorrido, ¿qué te parece?

Bolivia - Theo Roncken & Jorge Komadina

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Itxaso Arias: Claro, el contexto de la PGA es por los años 90. Se suele plantear como antecedente el Encuentro Zapatista del año 96 y en el 97 ya se crea formalmente en Ginebra, es en ese marco de la antiglobalización. Y claro, en esos años en Bolivia del 97 al 99 no pasa nada…

Brazil - Acácio Augusto Sebastião Júnior

Brazil - Elaine Campos

Brazil - Felipe Corrêa

Brazil - Guilherme Falleiros

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[Observação: Entrevista realizada por escrito]

Pergunta: Poderia nos contar um pouco da sua trajetória e como se tornou um militante?

Guilherme Falleiros: Salve! Por volta de uns 10 anos de idade (meados dos anos 80, calcula aí, ehehe) já nutria simpatia pelo anarquismo, principalmente por influência do punk, e também uma proximidade com a esquerda por influência de meus pais (bancários) e do clima sindicalista do ABC. Mas iria me tornar punk mesmo muito tardiamente (por volta dos 21 anos).

Brazil - José Eduardo Montechi Valladares de Oliveira

Brazil - Viriato (Nome Fictício)

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Pergunta: A gente gostaria de pedir para você nos contar um pouco da sua trajetória como militante político, aquilo que você se sinta confortável para nos contar, no sentido de a gente situar um pouco a sua experiência pessoal no contexto do que foi a sua participação na Ação Global dos Povos.

Zbrati - Colombia - El Proceso de Comunidades Negras

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Interviewer: bla-bla

Zbrati - Ecuador - Confederación Única Nacional de Afiliados al Seguro Social Campesino - Coordinadora Nacional Campesino

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Interviewer: bla-bla

Interviewee: la-la-la


Actualmente esperamos recibir o recopilar una entrevista de esta organización.

Este proyecto no representa la gama completa de movimientos y activistas involucrados en PGA. Como tantos proyectos activistas y de investigación, este está determinado por redes sociales limitadas y por los desequilibrios y prioridades de recursos dentro de nuestro sistema global.

Zbrati - Panama - Movimiento Juventud Kuna, MJK

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  • Region: Latin America
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  • PGA Affiliation: Movimiento Juventud Kuna, MJK
  • Bio: Esta era una organización convocante.
  • Transcript: Zbrati: Ta spletna stran je škrbina za snemanje intervjuja. | To gather: This web page is a place-holder stub for an interview.

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Interviewer: bla-bla

Interviewee: la-la-la


Actualmente esperamos recibir o recopilar una entrevista de esta organización.

Este proyecto no representa la gama completa de movimientos y activistas involucrados en PGA. Como tantos proyectos activistas y de investigación, este está determinado por redes sociales limitadas y por los desequilibrios y prioridades de recursos dentro de nuestro sistema global.

Zbratiz - Latin America - Various Organisations


Actualmente, esperamos recibir o recopilar entrevistas de varias organizaciones latinoamericanas.

Este proyecto no representa la gama completa de movimientos y activistas involucrados en PGA. Como tantos proyectos activistas y de investigación, este está determinado por redes sociales limitadas y por los desequilibrios y prioridades de recursos dentro de nuestro sistema global.

Tenemos entrevistas de solo algunas de las siguientes organizaciones:

Latin America

Si puedes ayudar con contactos, entrevistas o te gustaría participar de alguna otra manera, contáctanos. Te invitamos a contar tus historias y a recopilar las que creas que deben contarse. A pesar de las muchas lagunas de este proyecto, lo presentamos con la intención de inspirar a otros e indicar una muestra de la diversidad de la participación.

Brazil - Acácio Augusto Sebastião Júnior

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[Observação do Entrevistado: “O entrevistado recebeu o texto para revisã, mas decidiu não mexer para manter o texto como marcas, erros e lapsos na memória no momento da entrevista. Se fosse alteraria demais o conteúdo.”]

Entrevistadores: Para começar a entrevista, a gente sempre pede para a pessoa contar um pouco da sua trajetória pessoal. Como você se tornou um ativista, um militante?

Acácio Augusto: Eu gosto muito da noção de militante mesmo. E, cara, foi o punk rock. Foi o punk que me botou nessa história aí. Foi por meio do punk que eu comecei a ouvir falar de anarquismo, comecei a me interessar. Tive banda durante muito tempo. Toquei no Ácratas, toquei no Estado Alterado, toquei no Invasores de Cérebros. E todas as bandas tinham preocupações políticas. Acho que talvez a primeira experiência política mais sistematizada foi no colégio. (…) Eu estudei numa ETESP [Escola Técnica Estadual de São Paulo], e aí não tinha grêmio estudantil. Eu fiz técnico de eletrônica no Albert Einstein, lá na Casa Verde, e aí, eu e uma galera bem heterogênea falamos: “Vamos montar um grêmio, fazer um jornal”. Isso era 1994, eu acho, 1993-1994, comecinho de ter computador e tal, então era fácil editorar uma coisa no Word mesmo, e foi aí que a gente montou [o grêmio e o jornal]. E lá a gente tentava unir alguma coisa de atividade cultural, tipo festival de banda, com questões políticas, mas já, bastante por conta do punk, influenciado pelo anarquismo ou por alguma coisa que hoje se chama amplamente de autonomismo, porque (…) eu era o único que se dizia mesmo anarquista. Toda a galera [era], basicamente, crítica às instituições de esquerda tradicional, tanto que, por exemplo, a gente se recusou a ter filiação com a UBES [União Brasileira dos Estudantes Secundaristas], UNE [União Nacional dos Estudantes], sei lá, uma dessas daí, porque a gente já sabia que era tudo dominado pela UJS [União da Juventude Socialista], PCdoB [Partido Comunista do Brasil], e a gente não estava a fim disso. (…) [Essa] foi uma experiência bem local, mas foi muito importante para a minha formação, tanto política quanto intelectual, porque tinha um professor de história bem legal, chamado Hoper, que vendo o nosso interesse por política passou a dizer: “Olha, para ser isso, vocês precisam ler, precisam conhecer”, e emprestou muitos livros para a gente. Eu lia com bastante atenção e, paralelamente a isso, fazia também fanzine, que também misturava banda e discussão política. É claro que hoje a gente olha e fala: “Meu, era muito ingênuo” [risos]. [Mas] foi muito legal. E depois, via justamente o punk, começaram a aparecer coisas, por exemplo, como frequentar as reuniões do Comitê de Solidariedade às Comunidades Zapatistas em Chiapas. Isso era final dos anos 1990, então [era] muito marcado pela emergência do que depois vai ficar conhecido como movimento antiglobalização, contra a Alca [Área de Livre Comércio das Américas], contra o FMI [Fundo Monetário Internacional], contra o FHC [Fernando Henrique Cardoso]… Aliás, é engraçado pensar, hoje, que “Fora FHC” era moeda correntíssima na época. (…) Nesse meio [eu fui] conhecendo muita gente. Isso é uma coisa que sempre me marcou muito, porque é uma coisa que eu sempre gostei e sempre respeitei: conhecer o pessoal mais velho. [Tinha] o pessoal sindicalista, tipo o Magno, o Brandão, que era o pessoal do SINTUSP [Sindicato dos Trabalhadores da Universidade de São Paulo]. Mas talvez a coisa mais decisiva mesmo para a minha formação foi quando eu conheci, também via movimento antiglobalização, o Centro de Cultura Social, e passei a frequentar as palestras de lá, a entender que existiam os anarquistas que eram anarquistas mesmo, que não eram punks. Lembro de também mexer nos livros da biblioteca de lá, escutar com muita atenção o José Carlos Morel, que é uma figura muito interessante, um cara maluquíssimo! Hoje em dia ele nem gosta de mim, mas eu continuo gostando dele [risos]. Ele é físico, um cara de uma erudição absurda, e com uma verve de crítica ao marxismo que me encantava, eu achava do caralho. Ele tinha lido todo o Proudhon, todo o Bakunin. Então, basicamente, é isso. Aí, depois, [isso tudo] foi se desdobrando em um monte de coisas e acabei virando professor seguramente por conta disso. [Como militante] fui transitando nesses pequenos grupos, pequenas associações, [tendo] atuações pontuais, em grêmio estudantil, zapatismo, [e tive] uma passagem muito rápida pela Resistência Popular. [Foi] na época em que estava ocorrendo uma ocupação na cidade de Guarulhos, a ocupação Anita Garibaldi. Fiquei lá um tempo. (…) [Durante essa passagem pela Resistência Popular] a gente também tentou formar um núcleo de bairro em Pirituba, com o Clodoaldo, com o Alex, que era o pessoal que morava mais ou menos perto de onde eu morava. Na verdade, o Alex era da Freguesia, acho que o Clodoaldo era de Pirituba mesmo, e eu, da Cachoeirinha, na Zona Norte. [Isso tudo foi] até, finalmente, eu entrar na PUC [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Quer dizer, até eu começar a frequentar a PUC por causa de uma namorada (eu vendia livros lá na frente [da PUC]). Nessa época eu estava entre movimento antiglobalização e a Resistência Popular. Na verdade, não entre, porque a resistência participava também [do movimento antiglobalização]. Aí entrei para estudar Ciências Sociais lá [na PUC], conheci o Nu-Sol [Núcleo de Sociabilidade Libertária], conheci o [Edson] Passetti, que acabou sendo o meu orientador a vida inteira. E aí, acho que de lá para cá, a minha militância mais sistemática é dentro do Nu-Sol. São 16 anos produzindo revista, site, boletim, combinando [vida profissional e militância], o que no final não foi nem uma escolha. A vida, e a própria discussão sobre o anarquismo, acabaram me levando um pouco para isso: [fazer] da [minha] própria vida profissional, que é ser professor, uma espécie de militância.

Entrevistadores: Como você descobriu o punk? Com que idade? Como foi esse processo?

Acácio Augusto: Cara, eu nasci no berço do punk no Brasil. Eu gostava de rock e, por mais clichê que isso pareça, é verdade: eu ouvi Ramones e achei do caralho. Eu achava incrível a música. E é muito engraçado, porque depois você descobre que politicamente era outra coisa. Mas a música me interessava muito. Quando teve as manifestações do MPL [Movimento Passe Livre], em junho [de 2013], todo mundo se encantou com a frase “Anota aí: eu sou ninguém”, que acabou sendo usada pelo Peter [Pál Pelbart] em um texto. Mas a frase [de junho de 2013] que realmente eu amo até hoje é a frase que a Mayara [do MPL] disse em uma entrevista, eu acho que para a Folha de São Paulo ou para o Estadão. Em algum momento o jornalista pergunta para ela: “Por que você gosta de política?”. E ela responde: “Eu não gosto de política, eu gosto de Ramones”. Nem ela gosta dessa frase, [porque ela diz] que o jornalista tirou um pouco do contexto. Mas eu adoro. Essa frase é demais! No fundo, ela estava querendo dizer que não era uma questão de gostar, política era uma necessidade, mas isso é uma outra discussão. Então, eu comecei ouvindo Ramones, e tinha um grupo de moleques lá na rua. Na verdade, eu tive uma experiência inicial muito mais de bairro do que propriamente de punk. É que, justamente por conta dessa experiência de bairro, o punk se tornou algo absolutamente inevitável, embora a nossa turma não fosse composta só por punks. Nos anos 1990 tinha muito isso. Na verdade, na nossa turma tinha um pessoal que gostava de rap, um pessoal que gostava de reggae. E as bandas já indicavam esse hibridismo. As bandas muito marcantes para a gente, depois da onda grunge, que também tem tudo a ver com punk rock, eram Rage Against the Machine, Biohazard, que eram bandas que mesclavam isso aí. Bom, aí tinha um cara que chama Flávio. Era conhecido lá no bairro como Gordo, Flavião. Isso é uma história muito doida, porque depois que eu comecei a estudar, meio que perdi contato com o Flávio e eu reencontrei o Flávio na depredação da prefeitura, em [junho de] 2013. Porque ele trabalha até hoje com vídeo popular. Ele fez o projeto junto com o Caio, da Favela do Moinho. Enfim, junho de 2013 é um bagulho muito legal. Nesse dia da depredação da prefeitura eu [também] encontrei o Ariel [vocalista de bandas clássicas do punk brasileiro, como Restos de Nada, Inocentes e Invasores de Cérebros].

Entrevistadores: Você conheceu o Ariel na banda ou você já conhecia antes?

Acácio Augusto: Não, conhecia [antes]. A gente ensaiava na casa do Ariel. Na verdade, quando o Zorro saiu [do Invasores de Cérebros], a gente tinha ido ensaiar, eu tocava baixo no Ácratas, e o Ariel falou: “Você não toca baixo também? Toca aí pra gente”.

Entrevistadores: Ele [Ariel] morava lá?

Acácio Augusto: É, onde ele mora até hoje. Que é a casa [que aparece] naquele famoso documentário Punks (…). Não sei se é no Punks ou se é naquele do [Fernando] Meirelles [Garotos do Subúrbio]. Tem uma imagem que é a mãe da Tina falando dos punks – velhinha, assim, carona de matrona italiana. [Aquela] é a casa onde o Ariel mora até hoje com a Tina. Bom, enfim, aí o que aconteceu? O Gordo era do Diagnóstico Social, que era uma banda de punk rock (tinha [também] uma de hardcore, que era do irmão dele, o Fábio, Distúrbio Mental, que agora voltou também). Ele [Gordo] conhecia o Juliano, o Zoltan, que eram os moleques que eram amigos nossos, e ele [Gordo] tinha sido convocado para o Exército. Ele fez CPOR [Centro de Preparação de Oficiais da Reserva]. E ele tinha um material (tem aí, inclusive. Acabou ficando comigo isso) que era todo o material preparado para um fanzine que se chamaria Diagnóstico Social também. Aí, ele entregou para a gente. Eu, o Juliano e o Zoltan colocamos esse fanzine para funcionar. No fundo não funcionou. Só teve um número. É um fanzine grossíssimo, tem umas 50 páginas, mas nunca teve uma segunda edição, porque depois eu, o Zoltan e o Daniel, que também era um cara que tocava com a gente, acabamos fazendo outro, que chamava Comedores de Lixo; aí fizemos outro, que era Focos da Humanidade. Então essa coisa do fanzine, numa transição ainda da máquina de escrever para o computador, eu ainda peguei essa coisa da colagem e tal. Então, eu vivi essa coisa na Zona Norte, do punk, via o Gordo, via o Flavião. E, simultaneamente, a gente montou uma banda, que se chamava Ácratas, que era eu, o Zoltan, o Daniel e o Canetinha, o Adriano. A gente começou ensaiando na casa do Daniel, mas logo a gente descobriu que o Ariel tinha feito um estúdio de ensaio bem legalzinho no porão da casa dele. Nada muito profissional, mas tinha uma acústica legal, tinha uma aparelhagem boa, uma bateria boa, que era a bateria do Cuga [baterista do Invasores de Cérebros], e a gente começou a ensaiar lá. Acho que era tipo, sei lá, R$ 5 a hora, uma coisa assim. Aí a gente começou a frequentar a casa do Ariel, como banda para ensaiar. E a relação com o punk começou. Quer dizer, é que tem várias entradas, Zona Norte é foda, cara.

Entrevistadores: Você não descobriu o punk, o punk já estava lá, né?

Acácio Augusto: Isso. É, já estava lá. Tem essa coisa da casa do Ariel. Tem uma outra coisa que foi simultânea. A gente fazia as coisas com o grêmio no Einstein, que era ali na Casa Verde. E umas bandas já nesse estilo meio crossover, tipo Backup Gun, DOI- CODI, sempre tocavam nos festivais que a gente fazia e a gente também frequentava um boteco numa travessa da [Avenida] Baruel. É muito engraçado pensar que a gente tinha 14, 15 anos, e já era absolutamente maluco e absolutamente pretensioso: tinha banda, tinha fanzine, fazia uma pá de coisa. E um dia a gente estava nesse bar e o falecido Zorro [baixista do Invasores de Cérebros], que morava ali na Casa Verde, entra e fala: “Mano, cê não é aquele moleque lá que tem banda com os cara do Imirim e tal? Cê não quer gravar na SP Punk?”. Cara, para a gente foi igual assinar com a Warner [risos]. Aí, a gente saiu na [coletânea] SP Punk 3. Na época eu tocava com o Ácratas. Aí, o Estado Alterado, que era uma banda na qual depois eu acabei cantando, gravou também, mas na época eu não era do Estado Alterado. (…) Em termos de banda e políticos, esses encontros com o Flavião e com o Ariel foram mais decisivos. Principalmente porque, via o Ariel, eu conheci o Téo, do Colisão Social, que era de um grupo que chamava Motim, na Zona Leste, na Cidade Tiradentes, e foi com eles que eu passei a frequentar, por exemplo, o Comitê Zapatista. Então, eles eram um pouco mais politizados. Uma vez eu gravei com o Flávio uma entrevista com o Ariel que a gente precisa um dia trabalhar, porque o Ariel é uma das pessoas mais eruditas que eu já conheci. Ele leu para caralho, ele é muito inteligente. Então, imagina: eu, com 16 anos, ia para a casa do Ariel, e, além de ele me mostrar os vinis de punk, ele me apresentou Nietzsche, Bukowski, Antonin Artaud, Bakunin, Émile Henry. Ele tinha um verdadeiro fascínio pelo anarcoterrorismo. Porque é óbvio, né? Não à toa, o Ariel vem de uma geração que se politizou via movimento estudantil. E o Ariel, aos 45 do segundo tempo, não entrou nesse grupo de quase todo mundo da idade dele que fundou o PT [risos].

Entrevistadores: Mas ele está dentro desse grupo, né?

Acácio Augusto: Sim. Aliás, se você ouvir o disco do Restos de Nada, há várias referências ao trotskismo. Em “Esperança de liberdade”, por exemplo, ele canta: “A quarta ideia se formou”, porque a namorada dele, que era irmã do Douglas, guitarrista do Restos de Nada, era [do grupo trotskista] Libelu [Liberdade e Luta]. Tanto que tem uma época que ele [Ariel] meio que se afasta do punk, porque entra nesse rolê meio político, que é mais ou menos a época que ele briga com o pessoal do Inocentes.

Entrevistadores: Quando ele sai do Inocentes, né?

Acácio Augusto: Isso. Porque o Inocentes assina com gravadora, e ele não queria. Tanto que o Ariel brinca até hoje. Toda vez que [alguém] pergunta para ele, ele fala: “Não, há muito tempo eu não sou inocente” [risos]. O Ariel é foda por causa disso: além de tudo, ele tem uma ironia fina e mordaz. Não queira que o Ariel não goste de você. Ele é um demônio. Então, [além do Flavião e do Ariel] o terceiro elemento [que me aproximou do punk], que foi um elemento mais de rua, foi um sujeito que era conhecido como Chefão, que era [do] pessoal que se encontrava na rampa da Estação Santana do Metrô. Era um grupo que tinha um nome horrível (era uma gangue, na verdade), chamava Reformatório Punk. Enfim, o punk aconteceu nesse negócio da Zona Norte, com toda essa galera aí, Presunto, Jocimar (que eu não sei onde foi parar). E, de lá para cá, tem uma leva muito grande [de gente] que morreu, que foi presa, virou crente… Na verdade, quase todo mundo que – a palavra é ruim, mas é mais fácil de entender – quase todo mundo que se politizou mais conseguiu fugir de um destino mais trágico. Agora, quem entrou mesmo na onda do ganguismo se fodeu. Tanto é que o Téo virou professor de filosofia; Ramone está fazendo doutorado com o Lincoln Secco na USP; eu virei professor. Então, tem uma coisa meio nesse sentido que foi o punk que trouxe. Só que o que acontece? O punk, esse punk dos anos 1990, que foi o punk que eu vivi, (…) hoje eu avalio como um momento muito feliz de você ser punk, porque você já não tinha a barra pesadíssima da galera da primeira geração do punk, de treta. Embora eu tenha vivido bastante treta: cheguei a apanhar de skinhead, perder um dente com chute de coturno, acompanhar umas tensões. Quando você conta fica mais engraçado, mas na época era mais tenso. Eu brincava que show punk parecia festa junina [risos]. Você estava em um bar e alguém falava: “Tem uns carecas lá”. Todo mundo saía correndo. Aí [alguém falava]: “É mentira!” [risos] e todo mundo voltava. Mas sempre, numa hora, tinha alguém. E dava uma treta. Acho que chegou a ter um assassinato lá no Bar do Bau, que era um bar no Parque do Lago, na Zona Sul, que a gente ia direto. Era um busão que saía do Hospital das Clínicas. Aí, sempre na volta a gente vandalizava a sede da TFP [Tradição, Família e Propriedade], na Rua Maranhão.

Entrevistadores: Mas já não era uma guerra tão pesada quanto nos anos 1980, né?

Acácio Augusto: Isso. O pior de tudo era a polícia. Isso é uma história que a sociologia tem buscado contar, mas os anos 1990 em São Paulo, em termos de violência criminal e embate com a polícia era uma coisa brutal. Era muito brutal, porque era bicho solto, né? Você não tinha tudo que veio a ter depois, nos anos 2000, que meio que disciplinou as favelas, as prisões. Mas na época [anos 1990] era mato. Andar armado era comum. E aí, por alguma convergência da época, a Vila Madalena virou um ponto de encontro de todo mundo.

Entrevistadores: Tinha o bar Real, né?

Acácio Augusto: É, o Real, o Copo a Copo e o Bar do Reggae, que era ali na [Rua] Wizard. Cara, era uma coisa impressionante. Acho que São Paulo inteira ia para a Vila Madalena. De sábado era na Vila Madalena. Aí, eventualmente, quando tinha show, era o Bar do Bau, o Jaçanã, que era o lugar onde foram realizados os shows de lançamento da SP Punk, que era o Babão que organizava. A gente chegou a organizar uns três, quatro shows lá no Imirim. Tinha os shows que era o pessoal lá da Zona Leste, no Jardim Iguatemi (acho que era o Danone, do Deserdados, que fazia). Quando não tinha algum show em algum lugar da cidade, todo mundo ia para a Vila Madalena. E na Vila Madalena tinha o Real, que era onde a gente ficava: o pessoal do Colisão Social, a gente do Imirim, o pessoal do Fobia, um pessoal do Forgotten Boys também (na verdade, mais o Ramone. O Ugly e o Arthur não se misturavam tanto assim). Aí tinha o Bar do Meio, que era o pessoal do Gritando HC. A gente tinha uma certa rixa, principalmente quem era mais da periferia, tinha uma certa rixa, embora o Donald fosse lá do Mandaqui também, como o Renato. Aliás, na época que eu toquei no Invasores de Cérebros (eu acho que não cheguei a tocar um ano), eu toquei com o Renato. Era eu no baixo, o Renato na guitarra, o Cuga na batera e o Ariel no vocal.

Entrevistadores: O Renato da Red Star?

Acácio Augusto: Não, o Renato que era guitarrista do Gritando HC. Gente finíssima. Então, era um momento muito feliz de ser punk, [porque] você não tinha muito essa coisa de gangue, subúrbio versus cidade. Tinha essa coisa mais da polícia, e eu falei da Vila Madalena por causa disso, porque foi uma operação de pacificação da Vila Madalena. Eu lembro de ter estado lá em noites que colava caminhão da Polícia Militar e levava todo mundo. Qual era o argumento canalha dos caras? Tinha muito menor. Eu mesmo era menor. [Quando eu] comecei a frequentar [a Vila Madalena], eu tinha 16, 17, mas foi até os 20, 21. E era isso: era muita polícia, muito policial à paisana. Então, por exemplo, eu cheguei a apanhar, amigo meu chegou a apanhar de policial que era contratado por donos dos bares. Cara, para mim é absolutamente impressionante ver que a Vila Madalena virou o Itaim. Porque, nos anos 1990, era isso: tinha os maninho de tudo quanto é lugar.

Entrevistadores: Era o que é a Rua Augusta hoje, né?

Acácio Augusto: Não, cara, eu acho que era mais. Era gente que vinha de todo lugar da cidade mesmo. Quantas vezes eu saí sem dinheiro, sem dinheiro para o ônibus, ia para a Vila Madalena, voltava bêbado. Cara, era muita coisa, porque você tinha muitos recursos. Você tinha o Pão de Açúcar da Teodoro Sampaio, que a gente roubava bebida lá. Era uma época que eu tinha um visual meio skatista, meio punk e a gente usava muita calça larga, então a gente roubava garrafa inteira de lá. E fora outras coisas que eu não vou falar porque está gravando [risos]. Então você tinha essa cena e, ao mesmo tempo, apesar de tudo isso, da violência policial, você já tinha essa galera mais velha, tipo o Ariel, que te subsidiava intelectualmente, tanto do ponto de vista musical quanto do ponto de vista político. Você tinha já consolidado o movimento anarcopunk.

Entrevistadores: Neste momento o anarcopunk já era uma identidade cristalizada?

Acácio Augusto: Acho que já tinha uma segunda geração. Porque, para mim – eu estou sempre falando da minha experiência pessoal –, aqui em São Paulo, a grande figura do anarcopunk era a comuna Goulai Poulé, ali no Rio Pequeno. Então, você tinha os caras que estão aí até hoje, tipo o Johnny, o Rômulo, o Feio, o Alex, a Joice, o Josimas, que é tipo o Ariel do anarcopunk.

Entrevistadores: E tinha reuniões fixas do movimento anarcopunk nessa época ou não?

Acácio Augusto: Tinha um monte de coisas que eu não lembro direito, porque, enfim, foram tempos muito loucos mesmo.

Entrevistadores: Você frequentava os eventos do movimento anarcopunk?

Acácio Augusto: O anarcopunk, quando surgiu, tinha uma treta com o que era o punk. Tanto que tem uma treta histórica de um som na USP com, acho que, Execradores e Invasores de Cérebros, que selou a rixa. Mas eu cheguei um pouquinho depois disso. Essa treta deve ser, mais ou menos, final dos [anos] 1980, começo dos [anos] 1990. E eu comecei a dar rolê mesmo, tipo andar pela cidade, por volta de 1995,1996. Era uma coisa muito doida, porque eu lembro que a gente tinha uma rixa também com um pessoal de rap, porque o punk era uma coisa (…) muito além do que depois vai se chamar de “direito à cidade”. Tipo, a cidade era nossa. A gente andava em qualquer lugar. Tinha uma coisa transclassista muito interessante no punk. (…) Você conhecia o cara há um ano, aí, um dia, alguma coisa acontecia que você ia acabar dormindo na casa do cara [e] você descobria que o cara tinha a maior grana e estudava, sei lá, no Equipe, no Vera Cruz, alguma coisa desse tipo. E isso não estava muito em questão, porque o que estava em questão era a vivência mesmo, coletiva, de juventude. O anarcopunk já não. (…) Ele tinha uma identidade um pouco mais… não sei se fechada é uma boa palavra…

Entrevistadores: Mais rígida?

Acácio Augusto: É. Tanto que a gente brincava muito com as acusações. Por exemplo, eu, o Téo e o Ramone, principalmente, a gente costumava brincar: alguém fazia alguma merda, a gente falava: “Você é machista, sexista, homofóbico e não entende nada de cultura punk!” [risos] que era a acusação dos anarcopunks. Só que, particularmente, eu e o Téo, em especial, a gente tinha uma relação muito boa com os anarcopunks, que no fundo se deu menos pelo punk [e] mais pela via política, que era: a gente frequentava o Comitê de Solidariedade às Comunidades Zapatistas em Chiapas.

Entrevistadores: Como você conheceu o Comitê?

Acácio Augusto: Então, o Comitê foi isso: alguém falou “vai ter isso aí” e a gente passou a frequentar. Eu lembro que eu frequentava muito com o Diego, que era o Tatu, baixista do Colisão Social. E aí formou-se uma turma bastante híbrida, que era o Téo, o Tatu, tinha o Wilton, que depois virou skin[head]. E a gente, por meio do Comitê, foi tocar em um assentamento do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] em Promissão. Foi uma experiência incrível que a gente teve como banda. Meu, era muito louco! Imagina: Promissão nem é muito longe de São Paulo, deve ser umas 4 horas, 5 horas, de ônibus. A gente alugou um ônibus e foi para lá, [tocar para] uma galera que nem sabia o que era punk. Era uma coisa muito doida. A molecada adorou e a gente participou da mística, conheceu pela primeira vez a coisa da luta contra os transgênicos. Então, o Comitê jogou a gente nesse meio. Ao mesmo tempo, colocou também a gente em relação com essa esquerda mais tradicional. Por exemplo, uma das figuras centrais do Comitê era o Magno, que era do SINTUSP. O Rafael, que era um cara do MNU [Movimento Negro Unificado], um negão altão, também frequentava. Então, se você pensar que a gente está nos anos 90, era por meio desses canais que a gente descolava espaço para se reunir, ônibus para ir para os lugares. Na época, eu lembro que eu não pude ir por algum motivo, mas uma galera foi para Belém, no Segundo Encontro Interamericano pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, que foi promovido pelo movimento zapatista. Então, os anarcopunks, que eram mais dedicados, voltaram de lá totalmente engajados na causa zapatista, já hibridizando essa coisa do punk e do indígena, já numa coisa de que os punks seriam os índios da cidade. É muito interessante porque a gente viveu num microcosmo de pessoas todas as temáticas que, depois, vão virar as grandes temáticas: machismo, sexismo, homofobia, luta contra transgênicos, comida orgânica. [Tudo isso] que, sei lá, em 20 anos ou menos, virou tanto mercado como pauta, a gente já vivia isso, porque no meio disso você tinha muita coisa acontecendo ao mesmo. Então, você tinha as riot girls, como as meninas do Dominatrix, o TPM. Eu era muito amigo e sempre fui muito próximo da Raquel, que é uma pessoa incrível, um doce de mulher. E você tinha já a Elisa, que era uma mina totalmente hard, que introduziu toda a discussão que veio de Washington, com o Bikini Kill. E junto com essa discussão de Washington veio também o straight edge, e aí você teve uma ala do anarcopunk que se ligou ao straight edge. O Josimas menos, mas eu lembro a Elaine, o Ruivo, que é tudo gente que ainda está aí. Alguns se tornaram ligados a uma esquerda mais orbitando o PT, outros se tornaram, digamos, mais próximos da universidade, mas está todo mundo aí. Todo mundo que continua mais ou menos do mesmo lado continua se falando. Então, aí você tinha essas outras coisas. Então, o anarcopunk tinha isso do zapatismo, que era muito forte, mas [também tinha] essa parte que se ligou ao straight edge. Por exemplo, a Elaine, o Ruivo, o Marcolino, que continua lá na Baixada [Santista]. Era um pessoal que veio da União Libertária da Baixada Santista e passou a morar em São Paulo. Então, já tinha uma coisa, digamos, mais de cena. O straight edge [era] diferente do punk. O que era o punk? A gente até que era minimamente organizado e minimamente politizado e minimamente lido, vamos dizer assim, estudado. Mas a gente descolava um bar para tocar e a gente só tocava uma vez, porque provavelmente rolava uma treta [risos] e nunca mais chamavam a gente. O straight edge não. O straight edge conseguiu criar essa coisa de cena.

Entrevistadores: A Verdurada, né?

Acácio Augusto: Você ia em uma Verdurada, você via uma palestra, tinha banquinhas. E, no fundo, para ser muito sincero, a gente achava aquilo muito chato [risos]. A gente era muito louco, entendeu? No fundo, a gente era politizado, [mas] não achava que havia dicotomia entre você ter uma militância e ser muito louco, arrumar treta na rua. É por isso que eu acho que essa turma, que era a turma do Real – eu não gosto de chamar de turma do Real, mas que se reunia ali – circulava em tudo isso. Por exemplo: a gente ia em Verdurada, a gente fazia molecagem do tipo ir para a Verdurada muito louco [risos]. Mas, ao mesmo tempo, a gente tinha uma conversa bastante civilizada com todo mundo. Então, a gente (…) não era muito divisionista. Pelo contrário, a gente ia somar. É que, claro, chegou um momento em que, por n razões, as coisas foram se encaminhando… Sei lá, vou falar bem genericamente: uma das meninas fica grávida, outro começa a ter um problema mais sério com droga, outro resolve fazer outra coisa da vida. Eu mesmo cheguei num momento… Aliás, a AGP, por exemplo, foi bastante isso. Eu tinha feito uma viagem e eu voltei dessa viagem. Foi no ano que eu fiz 18 anos. Eu trabalhava numa coisa bizarra, que chamava CAMPS (Círculo de Amigos do Menor Patrulheiro de Santana), que (…) era uma merda que se vendia como projeto social, que recrutava trabalho terceirizado de menor para a Caixa Econômica, para o Correio e para o Pão de Açúcar. E eu trabalhava na Caixa Econômica da [Rua] Dr. Veiga Filho. Eu comecei a trabalhar lá com 16 anos, porque eu trabalhei dos 14 aos 16 numa empresa de instalação de luminárias, e aí descolei essa do CAMPS, que foi o trabalho mais perfeito para mim na época, porque era um trabalho de 6 horas, ganhava um salário mínimo, ticket [refeição] e passe de ônibus. Então isso meio que me bancava. Porque a gente cresceu… a minha mãe e meus dois irmãos, [a gente] nunca passou dificuldade, mas minha mãe garantia que eu tinha o que comer e onde morar, o resto era por minha conta. Então, trabalhar teve muito a ver com também ganhar uma certa independência da família. Só que o contrato [com o CAMPS] era: um mês antes de você fazer 18 anos, você era mandado embora, por conta de negócio de serviço militar. Aí, eu peguei esse dinheiro, fui viajar lá por Minas e eu voltei meio na noia, tipo: “Cara, mano, a minha vida tá uma merda [risos]. O que eu vou fazer? Não tá certo, não vou viver de hardcore". Eu realmente acho isso muito engraçado, porque eu virei professor universitário, então eu vejo a molecada de 20, vinte e pouco, com umas preocupações, e eu falo: “Ai, gente! [risos] Deixa quieto, vai passar.” [risos] Só que eu entrei numa noia tão grande! Nessa altura, já com 18, era meio foda, não podia ficar sem trabalho. E eu comecei a desesperar. Não arrumava trabalho, eu fui trabalhar no McDonald’s. Eu trabalhei dois meses lá. Eu trabalhei de tudo nessa vida, mas eu acho que foi a pior coisa que eu já trabalhei. Eu estava trabalhando lá e estava com a banda. E a gente foi panfletar um show nosso num lugar que chamava Roler Brothers, ali na Barra Funda. A gente ia tocar nesse lugar. A gente foi num show de rap que teve no Ibirapuera, panfletar esse show. E uma menina, que era estudante da PUC, a Mariela, que acabou sendo minha namorada depois, me entregou um panfleto: “Oh, vai ter uma manifestação dia 26 de setembro”.

Entrevistadores: Era o S26?

Acácio Augusto: É. Eu falei: “Que da hora!” Imagina, a internet ainda era embrionária, mas a gente já tinha notícia do que tinha sido novembro de 99 em Seattle, a coisa do black bloc… A gente tinha uma vaga ideia de que isso era coisa de punk e tal. Aliás, na época, para a gente, era muito mais uma coisa de punk do que de anarquista, propriamente dito. Eu sei que a gente foi para essa manifestação com os molotovs [risos] que a gente não conseguiu estourar [risos] e teve que jogar fora. Puta, imagina, é muito louco você pensar o quanto a polícia se preparou de lá para cá. Porque a repressão a essa coisa, por exemplo, foi uma coisa bizarra.

Entrevistadores: Olhando hoje parece amador, né?

Acácio Augusto: Total! [risos] Aliás, das duas partes. (…) Cara, eu lembro que a gente tirava sarro do pessoal da USP, do grupo lá da autogestão, o grupo do Pablo [Ortellado], porque vieram umas canadenses dar curso de ação direta e a gente (…) era muito de rua, [e falava] “Vai se fuder curso de ação direta! [risos] Tá me tirando, mano? Onde já se viu curso de ação direta?” Só que o resumo dessa história foi que eu fui para lá, nessa manifestação, e os anarcopunks tinham preparado uma intervenção estética, que era jogar bexigas com tinta vermelha na porta da Bovespa [Bolsa de Valores de São Paulo] e parece que um infiltrado (até hoje não sei se foi um infiltrado)… Alguém jogou pedra e, de repente, pum! Aí a polícia começou a pegar tudo e eu acabei sendo preso, junto com o Ruivo, junto com o Johnny, que era da Goulai Pulé, umas 14 pessoas. E aí a gente ficou lá o dia inteiro no 1º DP [Departamento de Polícia], lá da Rua da Glória, sofrendo todo tipo de humilhação.

Entrevistadores: É mesmo? Foi pesado?

Acácio Augusto: Eu achei foda pra caralho. E o efeito disso, para mim, foi assim: “Mano, tá vendo que merda? Você estava enterrando a sua vida”. E aí eu pedi as contas no McDonalds [risos]. Raspei o moicano de novo e falei: “Puta, mas como que eu vou viver?” Aí, eu falei: “Ah, vou vender livro”. Aí, fui vender na porta da PUC, porque alguém me falou que existia um cara que tinha uma editora que consignava livron anarquista, que era o Plínio [Coêlho], da [Editora] Imaginário. Foi assim que eu fui parar na PUC. Foi via o movimento antiglobalização. E, dali em diante, tudo isso que tinha sido vivido no punk de uma maneira bastante caótica – não poderia ser diferente – passou a ser mais… Não sei se sistemático é bem a palavra, mas o lance de estudar passou a ser mais sério. Tanto que eu lembro que eu fiquei [mais focado]. Por uma questão política e ética, eu jamais me diria straight edge – e também não poderia porque eu fumava, como fumo até hoje – mas eu lembro que eu fiquei uns dois anos assim… Eu acho que eu nem bebia, cara, porque eu falei: “Cara, eu preciso arrumar as coisas para me formar nisso aí”. Aí, entrei em Ciências Sociais [na PUC] (…) e passei a frequentar [mais] o Centro de Cultura Social, inclusive as reuniões da AGP.

Entrevistadores: Você participou das reuniões preparatórias do S26?

Acácio Augusto: Não, eu participei das reuniões preparatórias do A20. Do S26, não. Cara, eu vou ser bem sincero: eu não sei se eu cheguei a ir em uma reunião ou não. Porque era quando o Centro de Cultura Social ainda era na Rua dos Trilhos. E, na minha cabeça, eu não sei se eu fui em alguma palestra ou em alguma reunião preparatória. Mas eu avalio como não tendo participado porque não opinei. É que muito imediatamente depois, por conta de também frequentar o ambiente da PUC, eu conheci a galera do Cacorê, a galera do MAR [Movimento Ambientalista Revolucionário], [que] era quase toda da Zona Norte também; o CAVE [Coletivo Alternativa Verde] frequentava muito o CCS [Centro de Cultura Social]; o Marcolino, que era da União Libertária da Baixada Santista. Eu lembro que à época eu tive uma simpatia quase imediata com o Eduardo Valladares, que era uma pessoa legal pra caralho, me ensinou um monte de coisas. Eu vinha de uma formação de reunião política bastante esquerdista, tipo daqueles que pediam questão de ordem para falar. E quem me introduziu ao anarquismo um pouco mais 68, digamos assim, foi o Edu. E eu lembro até hoje, justamente porque, numa reunião da AGP, eu quis falar alguma coisa e falei questão de ordem e ele registrou, não falou nada. Quando acabou a reunião, ele falou: “Cara, você é anarquista, você não pode pedir ordem”. E aí, de novo, a memória é uma coisa muito doida, porque, da mesma maneira que da primeira fase ainda no punk vêm vários flashs, na época [que eu conheci a AGP] também, porque ali tudo se misturou: o punk, o straight edge, as verduradas, o Centro de Cultura Social, o CMI [Centro de Mídia Independente]. Eu lembro das reuniões de fundação do ICAL [Instituto de Cultura e Ação Libertária]. Eu lembro do Eduardo me ligando na casa da minha mãe, falando que eles iam alugar essa casa, que, de repente, eu podia ser uma espécie de funcionário do ICAL. Porque ele tinha me chamado e eu falei: “Puta, cara, a única maneira que eu posso retribuir é trabalhando”, porque não tinha dinheiro e eles foram meio loucos, alugaram uma casa cara pra caralho.

Entrevistadores: Atrás do metrô Vila Madalena, né?

Acácio Augusto: Pois é. Durou muito pouco tempo e virou uma doideira muito rápido. Mas, enfim, então tinha tudo isso que estava acontecendo e acho que, com a mesma velocidade que tudo aconteceu, tudo também foi se apagando. Porque o A20 – o 20 de abril de 2001 (imagina, eu tinha 21 anos!) – foi como se fosse o auge e a queda disso aí.

Entrevistadores: Você tem essa avaliação?

Acácio Augusto: Tenho. Porque, por exemplo, um cara muito foda, muito importante nesse processo era o Ruy Fernando Cavalheiro. Ele era vocalista do No Violence, só que ele é de uma família de advogados. A última vez que eu encontrei com ele já tem uns anos. Foi na FNAC. Ele virou juiz do trabalho em algum canto aí do Brasil. Mas ele fazia o apoio jurídico para a galera da AGP. E era uma coisa muito doida porque, do mesmo jeito que a gente era crítico às entidades tradicionais de esquerda, embora tivesse, digamos, uma “convivência pacífica”, eles também eram muito desconfiados da gente. Eles achavam que a gente era meio maluco, irresponsável. Então, em vários momentos o [Luiz Eduardo] Greenhalgh ia, defendia a galera que era do MST e do PT e punk era tipo marginal. Tinha uma diferença, não era muito clara, mas era seguramente tácita, entre o que seria um cara que era um preso político mesmo, foi preso por causa das ideias, e a gente, que era um bando de baderneiros [risos].

Entrevistadores: Tinha desconfiança, né?

Acácio Augusto: Tinha. Mas isso rolava, inclusive, no interior da própria AGP. Isso foi um debate – em alguns lugares mais intenso, em outros lugares menos – mas eu lembro, por exemplo, [que] a solução do Pablo era se identificar muito mais [com os] tutti bianci italianos – que eram uma espécie black bloc defensivo – do que com o black bloc que era de quebrar mesmo. Mas o problema é que eu vivi o A20 junto com as outras 14 pessoas que foram detidas no S26, sob um alerta do tipo: “Cara, não seja preso”. Porque isso acabou rolando. Até hoje. Recentemente eu fui parado pela polícia e aparece lá que eu cumpri uma 9.099, que é a Lei de Penas Alternativas, que no fundo eu nem sei porquê, porque esse processo nunca deu em nada, eu nunca fui para o júri, nada disso. Não sei se eu fui julgado à revelia, não fui informado. E, aí, o A20 foi uma doideira porque, sei lá, foram mais de 50 pessoas presas, uma caralhada de menores de 18 anos. Tinha um monte de gente, um monte de alunos do Edu, do Anglo, um monte de estudantes do Equipe, que tinham sido presos, mas eu lembro que na época eu consegui me safar. Na verdade, eu vivi uma história muito doida no A20. (…) Justamente porque tinha essas conversas [sobre ação direta não violenta], a gente tinha todo tipo de recurso, por exemplo: ir para a manifestação com uma roupa e levar uma roupa reserva na mochila para, em algum momento, trocar de roupa e não ficar visado pela polícia. Que era uma coisa muito doida. Ao mesmo tempo que a gente – pelo menos o meu grupo mais restrito – dava risada dos cursos de ação direta da USP, a gente também tirava essas informações tudo lá de fora. Tipo: porque daí você bloca, mas troca de roupa, tal. Aí, eu lembro [que] eu estava com essa namorada lá da PUC quando estourou [o enfrentamento com a polícia], porque a gente saiu da Gazeta, eu acho, e estourou, sei lá, antes de a gente chegar no MASP. E aí eu lembro que uma das piadas que rolavam era: uma das coisas que as canadenses ensinaram no curso de ação direta era se a polícia vir, você senta, [e] eles sentaram [risos] e a polícia sentou a porrada! Os caras sentaram o cacete. Foi feio. A galera que sentou acho que em frente ao Banco Central, sei lá, apanhou pra caralho. E foi tão cruel, cara, que era assim: eles apanharam e aí a polícia criou uma espécie de corredor polonês e quem saiu… Se eu não me engano, o Pablo teve um problema sério no joelho esse dia. Ele tomou um tiro de bala de borracha no joelho, alguma coisa assim. (…) Na verdade, a AGP continuou existindo, até porque, mesmo com manifestações de rua, até 2003 você tinha tentativas de sincronizar as manifestações no mundo inteiro e, mais do que isso, o próprio acontecimento do A20 gerou repercussão organizativa, digamos assim. Então teve muito ato, teve uma mesa grande na PUC, que foi muito engraçada, rolou uma pá de coisa interessante. Mas, enfim, para falar do A20, o que aconteceu foi: a gente saiu correndo por aquela rua do Hospital Nove de Julho e eu parei num bar, me troquei e comecei a fingir que eu era uma pessoa comum que estava ali, junto com a namorada. Só que, cara, a polícia não tinha expertise de manifestação desse mote, porque inaugurou todo um repertório novo. Um repertório no sentido sociológico da palavra, de Charles Tilly. É repertório novo em n situações, não só o simples fato de não ter um carro de som. Aí, a polícia ficava que nem louca, caçando as pessoas nos entornos. Só que, imagina, o que adianta você trocar de roupa se você tem um moicano de dread gigantesco [risos]? E o policial me viu, ele deu com o cassetete assim e ia me levar. Eu lembro que eu entrei em pânico, falei: “Cara, fudeu, vou ser preso e aí vai dar a maior treta”, porque o Ruy tinha botado o maior pânico: “Não seja preso porque não vai dar para te livrar”. E aí uma mulher x, cara, se colocou entre eu e o policial, e falou assim: “Toma vergonha na cara! O menino está tomando guaraná!”. Cara, ela deu um esporro no polícia que o polícia saiu assim: “É, tá bom, tá bom, tá bom”, e foi embora.

Entrevistadores: A mulher te salvou, né? Vai saber onde você estaria hoje?

Acácio Augusto: Sei lá, não sei se ia dar muita coisa, na verdade. Hoje eu penso… Mas é que, na época, a ideia era assim: se for pego de novo, o processo é reaberto, sei lá. E era um período muito pequeno. E outra: hoje em dia, tudo se torna muito diferente, principalmente, por conta de junho de 2013, mas, na época, cara, eu lembro, a polícia tinha verdadeiro ódio. Na verdade, era na mesma proporção, eu acho, um ódio e um medo da gente, porque eles falavam: “Quem que são esses caras? Quem que são esses moleques?” Fora que quando eles fizeram as prisões no A20, eles não contavam que uma grande parte das pessoas que foram presas era filho de professor universitário, estudante da USP. E isso deve ter gerado problema para eles. Eu lembro [que] a Marina, filha da Margareth Rago, tinha 16 anos. Ela foi presa nessa treta aí e foi uma coisa, enfim… Os próprios pais que eram… a Margareth é anarquista… eles se assustaram, tipo: “Mano, que negócio é esse? Os caras estão prendendo criança de 16 anos!” Porque eles não sabiam o que eles estavam fazendo. E, então, de fato, é o auge. E aí, retrospectivamente, você pode chamar de começo do fim, mas isso demorou, inclusive demorou para a gente perceber.

Entrevistadores: Então, a primeira vez que você ouve falar da AGP foi nesse convite para o S26?

Acácio Augusto: Isso. Era um convite organizado por um grupo de participação na AGP que já existia na PUC, que era um grupo acho que do CACS [Centro Acadêmico de Ciências Sociais], que agregava, digamos, estudantes independentes, como essa menina que me deu o panfleto, mas que eu acho que era mais ou menos organizado pelo pessoal da LER-QI [Liga Estratégia Revolucionária - Quarta Internacional], que era lá da PUC.

Entrevistadores: Com o que você acha que a AGP contribuiu para a renovação das lutas anticapitalistas de forma geral?

Acácio Augusto: Cara, acho que tudo. (…) Para mim foi uma coisa muito doida. (…) Não à toa, isso acabou virando, mais ou menos, o meu doutorado. Eu tenho esse contato com o anarquismo, via o punk, e até então, mesmo dentro do Comitê Zapatista, a minha experiência de militância, do ponto de vista estético, ético, ainda era de uma cultura de esquerda. (…) A gente tem que lembrar que o PT não era governo. Então, quem ocupava esses espaços de sindicato e tudo era, se não gente do PT, gente que orbitava nisso aí. (…) [E] diferente do Comitê Zapatista, que se reunia numa sala cedida por um sindicato ligado à CUT [Central Única dos Trabalhadores], [a AGP] se reunia no Centro de Cultura Social. [Isso] abre todo um leque de uma militância - nominal ou não – mais próxima do anarquismo, tipo libertária, autônoma, antiautoritária, aí vão ter vários nomes, e organicamente desligada dessa militância de esquerda partidária. Até porque um dos princípios do estatuto da AGP era a não participação de partidos. Então, olhando hoje, depois de tudo que aconteceu no Brasil, essa coisa de um movimento anticapitalista, não reformista, que renova e atualiza todo um repertório reivindicativo de 68, quer dizer, ligado aos chamados novos movimentos sociais, foi tudo a AGP que introduziu. E hoje eu acho que, inclusive, ainda não se entende direito isso. Ainda não se entende como que as pessoas que viveram a AGP vão desde gente que continua vinculada ao anarquismo até o cara que começou fundando um Centro de Mídia Independente e hoje é colunista na grande mídia, tipo o Pablo. E é muito louco, porque as pessoas que não gostam dele vão falar: “Ah, é contradição". Não, não é contradição. Isso não tem juízo de valor, não estou fazendo uma defesa, é um fato. Olhando em retrospectiva, a ideia era essa: ganhar espaço na opinião pública. Pelo menos de quem fazia essa parte, digamos, mais de mídia, ligado ao Centro de Mídia [Independente]. E ao mesmo tempo, entregou uma perspectiva de um anarquismo contemporâneo.

Entrevistadores: Um lance mais contra-hegemônico?

Acácio Augusto: Um anarquismo que não precisava negar a tradição operária, anarcossindicalista, mas que se ligava às lutas contemporâneas. Pessoalmente, o que vai acontecer comigo é que eu vou ter um período de afastamento, inclusive crítico, dessa experiência. Porque depois tem o A20, aí muitas coisas acontecem ainda em torno dele, uma mesa na PUC, um monte de coisas desse tipo, e eu acabo entrando para o Nu-Sol. E no Nu-Sol, principalmente por conta da proximidade que eu passei a ter com o Passetti, eu começo a ter uma leitura meio crítica do que é uma cultura de ativismo, uma coisa espetacular. Ok, isso é muito legal, mas o que você faz de regular? Você produz o que depois a gente vai chamar de cultura libertária? Que é o que os antigos anarquistas faziam. Mas aí não se trata de repetir o que eles faziam, mas assim: quais são os livros de hoje? As produções estéticas de hoje? E eu, nesse sentido, acho que o doutorado serviu muito mais para isso do que propriamente para o título. No doutorado eu me reconcilio com essa experiência, mas mantendo a perspectiva crítica. Ou, em resumo, o que acaba sendo a minha tese é: o anarquismo contemporâneo nasce com Seattle.

Entrevistadores: Você acredita nisso?

Acácio Augusto: Aliás, eu acho que mais do que o anarquismo contemporâneo. Eu acho que Seattle é o 68 da minha geração. E não porque eu estou em busca de um 68, não. É porque, de fato, é um corte muito grande que faz com que, por exemplo, todo mundo que não viveu isso, ou que não estudou isso, ficou falando merda ou perdido em junho de 2013. E aí, é nesse sentido que eu falo assim: as minhas diferenças políticas com o Pablo são gigantescas, ele inclusive tem concepções muito diversas da minha, mas por que ele é alguém que entende junho [de 2013]? Porque ele viveu isso. Quer dizer, não só viveu. O Pablo foi uma pessoa chave. Em São Paulo, ele que traz as coisas, ele que traduz um monte de coisas. Mas não só ele, um monte de gente que eu já falei aqui. Mas o importante, independente das pessoas, é: para uma juventude que cresce no chamado “Fim da História”, que não tem a menor perspectiva nem da revolução ao velho molde da Revolução Francesa, do marxismob mais tradicional, e nem se seduz pelo que seduziu a geração anterior à nossa, que é a invenção democrática, a participação, a gente já tinha sacado que tudo isso era balela, muito antes do PT entrar no governo [risos]. Tanto é que, dos intelectuais mais velhos, quem vai melhor entender isso? O Paulo Arantes, justamente porque ele é o cara que está vivendo isso aí, que está conversando com essa gente, foi orientador do doutorado do Pablo. Ele está sacando o que está acontecendo e está vendo que não vai dar muito certo. E, mais do que isso, porque, por exemplo, das coisas que ainda aconteceram depois do [A20]… Não, depois não. O primeiro Fórum [Social Mundial] é antes do A20, né?

Entrevistadores: O primeiro Fórum é em janeiro de 2001.

Acácio Augusto: Isso, exatamente. A gente vai para o Fórum, em janeiro, antes do A20, e a gente vai para o Fórum para criticar o Fórum. Eu fui em um ônibus do SINTUSP, com a galera que era, mais ou menos, do Comitê da PUC, que participava da AGP, e lá a gente encontra todo mundo e organiza uma série de atos contra… Não é contra o Fórum, mas, assim…

Entrevistadores: Críticos ao Fórum?

Acácio Augusto: Críticos ao Fórum. A gente lê uma carta no hall da PUC, a gente faz uma manifestação que, inclusive, é reprimida pela polícia de lá. E o que acontece, em grande medida, é que essa esquerda que acumulou a experiência das propostas do Claude Lefort, do Carlos Nelson Coutinho, foi participar do governo. Uma social- democracia que ainda nem era a coisa da Terceira Via do [Tony] Blair. É até injusto dizer que eles já eram isso. Eles eram ainda algo entre o Lefort e o Blair. Do ponto de vista intelectual, algo entre o Lefort e o [Anthony] Giddens ainda. Porque eles ainda mantinham uma mística de uma esquerda mais tradicional. Tanto que quem dá a grande conferência no primeiro Fórum é o Hugo Chávez. Era o único que tinha já virado governo na América Latina. E os grandes nomes do primeiro Fórum são, se eu não me engano, o [Immanuel] Wallerstein, a [Hebe de] Bonafini, o Boaventura de Souza Santos.

Entrevistadores: O Chomsky já estava no primeiro?

Acácio Augusto: O Chomsky. O Chomsky eu tenho certeza. O Wallerstein é que eu não lembro se estava ou não. Mas, por exemplo, com certeza foi a primeira vez onde eu ouvi esse nome. (…) Enfim, de qualquer maneira, o que acaba acontecendo é que essa galera [da AGP], que era uma galera muito pequena, a gente era uma minoria muito minoria numérica, e a gente perde. Porque, no fundo, ganha a perspectiva de virar governo. Tanto que muita gente que se formou aí vai, digamos, moderar o discurso para participar de governo. Não estou dizendo que ninguém se vendeu, nada do tipo. Leu desse jeito porque, do mesmo jeito que eu li que “Ah, não, eu preciso me dedicar mais especificamente ao anarquismo”. Porque não existia uma coisa capaz de agregar, do ponto de vista político-ideológico, vamos dizer assim, as pessoas. Ser da AGP era ser de um grupo, de uma espécie de frente, ou coisa do tipo. E eu acabei, via AGP, consolidando meus laços com o anarquismo via CCS num primeiro momento e via o Nu-Sol num segundo momento. Inclusive, foi o que me afastou da Resistência Popular, que se dizia anarquista, mas tinha uma estética muito mais ligada a essa esquerda mais velha, essa esquerda mais… É que velha é uma palavra meio ruim, mas, assim, mais tradicional.

Entrevistadores: Como foi a sua experiência na Resistência Popular?

Acácio Augusto: Cara, foi muito curta. Muito curta.

Entrevistadores: De quando a quando?

Acácio Augusto: Sei lá, não sei se chegou a ser um ano, seis meses. Mas eu lembro o que eu procurava nela. E o que eu procurava era: para além dos dias de manifestação, um espaço onde essa coisa fosse mais contínua. Então, eu cheguei a participar de algumas reuniões – eu, o Alex e o Clodoaldo – na tentativa de montar esse núcleo de Pirituba, que eu lembro que não foi muito para frente. Cheguei a participar de algumas reuniões da própria Resistência, duas ou três, muito poucas. E cheguei a ficar por alguns dias nessa ocupação Anita Garibaldi, lá em Guarulhos, porque tinha uma cara que era da Resistência, que eu não consigo lembrar o nome dele, que morava na ocupação. A tática era basicamente se aproximar dos movimentos populares, mas antes de difundir o anarquismo lá dentro. Mas eu lembro que eu já não era muito fã dessas concepções mais plataformistas. Mas (…) eu participei do A20 como militante da Resistência Popular. Eu era da Resistência, mas eu falava nas reuniões da AGP em nome próprio. No punk eu já era meio assim. Não à toa eu tenho grande simpatia pelo anarcoindividualismo. Existia até uma falta de noção minha, sabe [risos]? Porque (…) eu era muito pretensioso, mas o lugar também era favorável. Você não precisava pedir a palavra para ninguém. Você se inscrevia e falava. E nessa você acabava polemizando mesmo com os militantes mais antigos, mais experimentados. (…) O Léo [Pinho] mesmo, várias vezes, tentou me arrastar para a LER, mas eu não queria. Então, em abril de 2001 eu ainda me considerava militante da Resistência Popular.

Entrevistadores: O seu contato com a Resistência é antes da AGP ou você conhece a Resistência Popular via AGP?

Acácio Augusto: Não, não, é antes. Porque quase todo mundo que criou a Resistência Popular veio do punk. Clodoaldo era punk. Alex era punk. Não sei, acho que o Rugai era punk também. O Ronaldo com certeza era punk, e depois começa com esses papos de skinhead. Porque a Resistência é uma derivação da OASL [Organização Anarquista Socialismo Libertário]. Eu lembro que tinha o Sol, que era um moleque lá de Guarulhos, que foi onde começou isso aí. E a própria comuna anarcopunk, que era essa casa do Rio Pequeno, ela se chamava Goulai Polé. Goulai Polé era o grupo do [Nestor] Makhno na Ucrânia. Então, [tinha] essa simpatia pela makhnovtchina, por Kronstadt (…) Lá fora, isso vai ser muito mais claro. Tanto que você pode encontrar n literaturas que vão dizer isso. Aqui não era tanto, por um contexto próprio da América Latina. Mas quando todo mundo fala que a História acabou porque a União Soviética acabou, um monte de gente vai levantar a mão e falar: “Olha, não, o anarquismo sempre disse que a União Soviética e os Estados Unidos eram uma merda”. Tanto é que isso é uma coisa que o punk tem. Isso aqui é uma das primeiras coletâneas de punk [Acácio mostra a capa do disco “Ataque Sonoro”]. Está vendo? É um míssil dos Estados Unidos e da União Soviética apontando para a cidade. Então, só para terminar de responder [sobre a contribuição da AGP para a renovação das lutas anticapitalistas]: de um lado, [a AGP] reativou essa história e atualizou essa memória do anarquismo para quem já era simpático ao anarquismo; e, de outro, trouxe para várias pessoas essa possibilidade de uma militância à esquerda que não estivesse vinculada a essa esquerda burocrática. Fosse você um grupelho trotskista, tipo a LER-QI; fosse, por exemplo, um amigo meu, de bairro, que cresceu mais ou menos com a mesma experiência que eu, mas que nesse momento está lá na UNESP [Universidade Estadual Paulista], fazendo Ciências Sociais em Marília. Eles lá tinham um grupo que chamava CELMA (Coletivo de Estudos Libertários de Marília), eles acabam bandeando para um marxismo heterodoxo. Começam a ler Maurício Tragtenberg, João Bernardo. Em resumo: eles são o Passa Palavra hoje. Quem que era o grupo ali? Era o Taiguara, que a gente era vizinho, a mãe dele é vizinha da minha mãe. (…) A Resistência Popular me chamou muito a atenção, porque o grande autor para a gente, na época, era o Malatesta. Porque eram os textos inclusive mais acessíveis, porque eram textos curtos, de jornal. Os textos do Malatesta são maravilhosos, porque depois que eu fui estudar, ele conseguia condensar argumentos gigantescos do Proudhon, por exemplo, em pequenos textos; ele conseguia traduzir as enormes polêmicas do Bakunin com Marx também de uma maneira que qualquer moleque punk que nem eu, na época, conseguia entender. E mais que isso: para quem era mais próximo do anarquismo mesmo, tinha provocações maravilhosas. Então, você estava de saco cheio dos caras que ficavam dizendo o que era ser militante ou como você tinha que militar, aí você abria aquela coletânea do Malatesta que o Maurício [Tragtenberg] fez para a Editora Cortez, os escritos do Malatesta, e com vários artigos dele. Aí, tem o artigo de quando o Lênin morreu, o Malatesta escrevendo: “Lênin está morto, viva a liberdade!” [risos] Então, era uma coisa que, para a gente, era assim: “Você chorou por que o muro [de Berlim] caiu? Ou você acha que a História acabou porque o capitalismo venceu? Não. A gente ainda existe”. E é bem louco, porque não é à toa que eu arriscaria [dizer] – não é um estudo sistemático – que 90% dessas pessoas vêm do punk. Porque no punk você aprende a não ter problema nenhum em ser minoria; a não ter problema nenhum em não ser hegemônico; problema nenhum em ser visto com maus olhos por todo mundo. No fundo, o punk inclusive buscava isso. A ideia era você ser tipo um cara chato. Basicamente, um cara que fedia, um cara…

Entrevistadores: Indesejável, né?

Acácio Augusto: Indesejável, é. Tanto que, por exemplo, do ponto de vista intelectual, quando, já fazendo pesquisa de iniciação científica, eu vou ler Michel Foucault, essas coisas, eu falava: “Ah, mano, isso aí eu já sabia tudinho” [risos] O que é a cadeia, o que é a polícia, o que é essa história. É isso. E é mesmo, cara. Outro dia, estava falando com o Márcio aqui mesmo: quase todos os caras gringos que eu fui ler que discutiam o movimento antiglobalização, você vai procurar a história do cara…

Entrevistadores: Tem um punk em algum lugar, né?

Acácio Augusto: O Mark Brain, o Richard Day… Tudo meio que veio do punk. Mas eu acho que é isso: o que a AGP trouxe – e eu sei que você [Márcio] está trabalhando com isso e eu concordo – foi uma cultura de uma outra militância.

Entrevistadores: [Márcio]: É isso que eu ia perguntar: se você acha que a AGP dá uma identidade para uma subjetividade dispersa, para uma esquerda não alinhada? Ela dá uma coesão mínima?

Entrevistadores: [Bruno]: Você acha que a AGP cria ou contribui para criar uma nova cultura política no Brasil?

Acácio Augusto: Cara, se você não entender como uma nova cultura política capaz de grandes efeitos, restrita, sim. Porque, por exemplo, até hoje eu conheço gente – não sei em que medida também as pessoas se declaram assim – que vão de anarquistas a gente que hoje fica gritando “Lula livre”, apoia o [Guilherme] Boulos, que fala “eu me formei como militante antiglobalização”. Tem um amigo meu, o Victor Marques, que é professor da UFABC [Universidade Federal do ABC], ele fala que ele é da antiglobalização. E ele é tipo um jacobino. Aliás, ele adora a revista Jacobin. E isso só a AGP produz. Sem a AGP, eu e o Victor, a gente nunca ia se olhar na cara. Com a AGP, a gente diverge, mas a gente consegue conversar. Porque, no fundo, a proposta da AGP era essa. Se você pensa mais globalmente… Mais globalmente não, isso aconteceu em São Paulo, porque o Pablo trouxe a galera da ATTAC [Associação pela Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos] aqui. O que era a ATTAC? Um monte de reformistas. Então, você vai juntar um black bloc com um cara da ATTAC. Quer dizer, o black bloc não, porque aí é que está, né? O black bloc é o insuportável da história, ele é o punk da conversa. Mas se você pensar que o black bloc não é um sujeito, o black bloc é só uma tática, é só uma situação, então, mesmo quem pratica black bloc vai conseguir conversar. Ou, se o pessoal mais velho olhava para os punks lá no S26 e não sabia direito se eles eram militantes ou se eles eram vagabundos, mesmo o cara mais partidário, mas que veio da antiglobalização, vai falar “independente de eu discordar…”. Cara, em 2014 ou 2015, eu fiz uma mesa na Semana de Relações Internacionais da PUC que era eu e o Pablo. E o Pablo discorda frontalmente da tática black bloc, ele não acha uma tática válida, ele vê um monte de problemas. Só que, naquele momento, naquele contexto de perseguição, não é nem que ele defendia, ele falava: “Oh, o que estão falando que é black bloc, não é”. Ele fazia um papel, digamos assim, meio de esclarecimento. E aí eu falei abertamente defendendo, dizendo - que é o que eu acho mesmo - [que foi] a grande novidade que junho trouxe. Porque no [movimento] antiglobalização, o que foi feito com o black bloc – nem tinha esse nome, no fundo eram os punks. Embora os punks…

Entrevistadores: [Márcio]: Mas não tinha aquela estética ainda?

Acácio Augusto: Tinha, de cobrir o rosto e tal, mas, assim…

Entrevistadores: [Bruno]: Mas aqui no Brasil não se usava a palavra.

Acácio Augusto: É… o nome circulava. Eu lembro do Martín, que era boliviano… Chileno eu acho… Que fazia Ciências Sociais na PUC também. E ele já lia bem inglês na época, e ele falava: “Não, a gente é isso aí”. E ele só se vestia de preto. Mas (…) a mídia nunca nomeou. Até porque éramos tão poucos que não dava nem para fazer o que foi feito em junho: separar manifestante pacífico de vândalo. Tipo, todo mundo era vândalo [risos]. Todo mundo. Era tipo: “Quem que são esses caras?”. Hoje a gente tem relatos de expulsão de black bloc de manifestação do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto] contra a Copa; relatos de gente que apanhou em Fortaleza de segurança do MTST porque estava blocando… Quer dizer, o incômodo do black bloc à esquerda e à direita continua existindo. Mas para quem se formou nessa cultura política do [movimento] antiglobalização tem outro trato com esse tipo de gente, com esse tipo de tática, melhor dizendo. E eu acho que o que o que a antiglobalização traz é isso. Cara, pensa uma coisa: o que era o CMI se não um projeto muito embrionário de Facebook? Porque, no fundo, qualquer um podia entrar lá e publicar. A ideia era essa.

Entrevistadores: Inclusive umas publicações de extrema direita, né? Inclusive o Olavo de Carvalho…

Acácio Augusto: Isso. Eu lembro que a discussão quando o pessoal começou a fazer o Passa Palavra era que o que diferencia eles do CMI é a moderação. É ter alguém que diz assim: “Esse comentário vai ser publicado ou não”. O CMI era o samba do crioulo doido, o que era bom e ruim ao mesmo tempo. E que ao mesmo tempo mostra o próprio caráter do capitalismo. (…) Eu era crítico desde essa época à experiência do CMI. Eu não gostava dessa história “se você odeia a mídia, seja a mídia” porque eu tinha uma ideia, que depois eu só fui encontrar mesmo nos versos da Audre Lorde, que é tipo: você não vai derrotar seu inimigo com as armas dele. Então, por isso que eu também acabei cada vez mais indo para uma coisa menos ativista e mais militante, vamos dizer assim, porque não tinha essa pretensão, por exemplo, de ser a mídia. Mas, por mais que eu tivesse todas as críticas, quem dera hoje a gente tivesse um CMI e não o Facebook. [O CMI] era uma plataforma muito mais democrática, muito mais livre no uso das pessoas, enfim… E não deu, porque, no fundo, o que aconteceu foi que muitas dessas invenções midiáticas do movimento, de maneira direta ou indireta, acabaram sendo capturadas pelas grandes corporações. O Rise Up, o próprio Twitter foi inventado para usar em manifestação e aí alguém comprou e virou o que virou.

Entrevistadores: Eu já li, posso estar enganado, que o criador do Twitter esteve envolvido no projeto original do Indymedia… Acácio Augusto: Sim, sim, sim. Sabe onde está essa história? Os nossos amigos do Comitê Invisível contam essa história direitinho. Essa história está lá, bem contadinha. Inclusive um cara que era anarquista. Porque a ideia era o que, quando eles criaram? Como você faz para escrever uma mensagem que vai chegar ao mesmo tempo para todo mundo? Então, eles criaram uma plataforma onde as pessoas se seguiam e, aí, eu postava ali, chegava para todo mundo de uma vez só. E aí, esse sujeito acaba vendendo o projeto para alguém.

Entrevistadores: Impressionante isso. O professor Elvio, da Geografia, falou que hoje a…

Acácio Augusto: O Elvio. Foi meu professor na PUC.

Entrevistadores: Ele falou que o dono da maior fábrica de produtos veganos lá nos Estados Unidos hoje é um ex-hippie.

Acácio Augusto: Não, isso tem. Mas você vê: até nisso o antiglobalização… Que é uma controvérsia também, né? Tem gente que critica [o nome antiglobalização]. A minha leitura é: o nome original, gringo, que está lá no Ethnography, do [David] Graeber, é Movimento por Justiça Global. No fundo, ele nasce um pouco questionando a… Não tem um nome que um economista francês dá para isso? É “dívida odiosa”, uma coisa assim, questionando a dívida dos países que deixaram de ser terceiro mundo para ser chamados de países em desenvolvimento. Mas pega o antiglobalização. E gente como o [David] Graeber critica [esse nome]. Eu gosto. Eu gostava. Eu acho o nome legal. Enfim, de qualquer maneira, é um nome que vai pegar. E o antiglobalização, quando é domesticado pela política, ele passa a ser chamado de altermundialismo e vira essa série de políticas compensatórias, ou essa curtíssima experiência de welfare, pós-Guerra Fria, que a América Latina viveu. Mas você vê justamente isso: assim como em maio de 68, muita coisa que foi criada espontaneamente foi capturada. O que era antissistêmico – por isso que eu gosto do antiglobalização – virou sistêmico. Qual é a diferença? Por n fatores – econômicos, políticos, sociológicos – demorou muito mais para fazer esse movimento em 68. Com o antiglobalização foi muito rápido! E, aí, é óbvio, falando agora mais globalmente, você não vai entender o Bernie Sanders sem entender o antiglobalização. Você não vai entender nem o Macron sem entender o antiglobalização. Você não vai entender o Podemos sem entender o antiglobalização. Foi daí que tudo isso saiu. Você não vai entender junho de 2013 sem entender o antiglobalização. Foi nesse momento que essa cultura é gestada. E o que era um grupo muito pequeno, que já se incomodava com a hegemonia que o PT tinha na esquerda (aí voltando a falar de Brasil), para essa juventude que já nasce sob o governo petista, então isso já fica mais fácil. No que eu acho que a gente foi derrotado, digamos assim, foi que a gente não conseguiu se afirmar de tal maneira (…) que [fizesse com que] uma parte dessa juventude incomodada com as formas autoritárias de representação, de dirigismo da esquerda tradicional, olhasse para esses novíssimos movimentos sociais e não estivesse agora olhando para o Olavo de Carvalho, para a direita. Porque o grande paradoxo, para quem gritou contra a ALCA e o FMI na rua, no final dos anos 90, é ver um Donald Trump hoje. A gente era contra os acordos de livre comércio, e aí, de repente você vê a emergência de uma direita maluca que fala de uma estratégia globalista que passa por uma ONU que é marxista! [risos] Dá até vergonha de falar, mas é o que os caras falam. E, no fundo, naquele momento, o que você teve foi uma esquerda partidária que fez o serviço de tornar isso palatável para o continente que estava mais se fodendo com isso. Eu, depois, cheguei a escrever sobre isso, em 2014. E a síntese, para mim, era que teve muito Porto Alegre e pouco Chiapas. A gente precisava de mais Chiapas e menos Porto Alegre. E o que aconteceu foi assim: todo mundo desceu, literalmente, porque a gente começou em Chiapas; teve aquele encontro na Espanha, que é famoso também, que foi o Segundo Encontro pela Humanidade e contra o Neoliberalismo (…), isso é 97. Quatro anos depois, a gente está em Porto Alegre, achando que Orçamento Participativo é a melhor coisa do mundo. Olha onde a gente foi parar! Olha a merda que isso deu.

Entrevistadores: Tentando juntar isso com uma experiência pessoal: você disse que depois do A20 você passa a ter algumas críticas em relação à AGP, mas você continua frequentando as reuniões ou você se afasta?

Acácio Augusto: Não, eu continuo. Porque, na verdade, como a AGP se reunia no Centro de Cultura Social, eu continuei indo. Acho que a última manifestação que eu fui, que podia ser dita assim, da AGP, foi [contra a] Guerra do Iraque, em 2003.

Entrevistadores: Mas entre, digamos, o A20 e a Guerra do Iraque, você percebe uma continuidade?

Acácio Augusto: Não, porque o que acaba acontecendo também é que (…) muita gente começa a ter medo. E aí, o que acaba acontecendo é que ela [a AGP] acaba virando muito mais o grupo da USP do que esse grupo mais amplo. E mais do que isso: muita gente, a partir do A20, começa a investir menos na AGP, como fórum grande, e mais nas próprias atividades. Então, no fundo, você tem simultaneamente algo que a gente poderia chamar de esvaziamento da AGP (…). Eu, por exemplo, vou me interessar, a partir de então, muito mais em frequentar o Centro de Cultura Social do que propriamente a AGP. Aí, simultaneamente, eu passo a frequentar as reuniões do Nu-Sol e começo a me dedicar mais ou menos a isso. E aí começa a rolar uma parada, pessoalmente, bem assim: “Não, o meu negócio é anarquismo, não é essa coisa meio híbrida aí, que eu não gosto”. Em 2001, a [editora] Record publica o [livro] Império, do [Antonio] Negri, e ali eu leio e já vejo que esse papo de multidão não me interessa. (…) Embora eu não tenha me afastado totalmente, a partir dali eu cheguei à conclusão que eu preciso me dedicar menos à AGP e mais ao anarquismo. Ou mais ao anarquismo e menos à AGP. (…) No próprio Império, o Negri faz questão de dizer: “Nós não somos anarquistas”. E, como a própria AGP já começou a viver depois do A20… Eu lembro de um processo que foi disparado pelo Morel, que ele queria expulsar a LER-QI da AGP. Porque a AGP tinha como princípio não aceitar partidos políticos e a LER-QI não era um partido político, mas o argumento dele é que eles não eram um partido político AINDA. Porque já eram partido político na Argentina. E aí, quem dá meio um “deixa pra lá” é o Edu Valladares e o Pablo. O Pablo fala: “Não, Morel, deixa”. Só que o Morel era loucão (…) e nos ataques ele demonstra uma erudição absurda (…). É como se, na cabeça dele, a AGP fosse a Primeira Internacional. E, se a gente deixasse o marxismo se criar dentro dela, eles uma hora iam fazer o que o Marx fez com o Bakunin. Na época, eu não tinha essa noção, mas, [pensando] agora, retrospectivamente, a ideia dele era essa. E, no fundo, isso é uma coisa interessante: ao mesmo tempo que a gente pode dizer, acho que com toda a tranquilidade, que a AGP funda uma nova cultura política para uma geração mais nova, também pode-se dizer que ela está inscrita nessa longa tradição, que está lá na Internacional. Que é uma coisa que o século XX destruiu, eu acho. Quando você tem a Comuna [de Paris]… [18]71 é a Comuna e [18]72 é quando a ala bakuninista é expulsa [da Primeira Internacional]. E aí, já no começo dos anos 80 do século XIX o anarquismo bandeia quase todo para as ações terroristas, e o refluxo disso é a perseguição policial. Aí, o deslocamento dos anarquistas menos afeitos às ações violentas para um trabalho de educação, tipo Sébastien Faure, ou para o anarcossindicalismo propriamente dito, é também o momento em que a ideia de partido [ganha força]. Até então, [a ideia de partido] era nula no movimento operário. Embora o Manifesto do Partido Comunista seja de [18]48, ele só passa a ser lido mesmo pelos trabalhadores a partir da década de [18]70. No fundo, o Marx retoma, depois da Comuna, para dizer: “Tá vendo como tem que ter ditadura? Senão, os caras vão acabar com a gente”. E aí, de fato, a tese que acaba vencendo no movimento operário é a tese do partido como forma de garantir isso. Resumidamente, o que hoje se chama de esquerda e direita é menos uma invenção do século XIX e mais uma invenção do século XX. E a AGP talvez retome essa coisa de uma ampla luta de todos os explorados. Muita gente vai se tocar disso. Por exemplo, se você ler o [Ernesto] Laclau e a Chantal Mouffe, eu acho que a ideia de populismo deles é muito inspirada na experiência antiglobalização, que é o que no Occupy Wall Street vai aparecer como os 99% contra o 1%. E aí, de novo, onde a gente está sendo derrotado nessa história é que quem está ganhando a narrativa (eu odeio essa palavra, odeio), mas quem está ganhando essa ideia de que somos nós contra a elite, é a direita. Por incrível que pareça. É o Aurora Dourada na Grécia. É o Trump nos Estados Unidos. Por exemplo: quais foram as duas grandes produções políticas do Occupy Wall Street? O Tea Party e a renovação do antiglobalização. Basta ler Um projeto de democracia, que é o livro do Graeber sobre o Occupy Wall Street. Quem ganhou mais? O Tea Party. Quer dizer, [o Occupy Wall Street] foi 2011, e em pouco mais de meia década, eles fizeram um candidato, enquanto o candidato do Occupy foi o Sanders, que foi morto dentro do próprio partido. Quer dizer, foi sufocado pelos próprios democratas. E é o que a gente aqui também não soube produzir. Quer dizer, embora, para mim, isso pouco importe, porque eu sou anarquista, mas quem acreditava numa certa disputa (isso é uma conversa que eu já tive com o Victor) não traduziu isso politicamente. Traduziu com o quê? Com um sujeito como o Boulos? Meu, faça-me o favor! Porque o Boulos não tem nem a estética desse grupo. O Boulos é uma espécie de… Se o 18 Brumário [de Luís Bonaparte] dizia que é “primeiro como tragédia, depois como farsa”, a gente pode dizer que é primeiro como tragédia, depois como comédia! [risos]. Porque ele é assim. Pessoalmente, eu não tenho nada contra o Guilherme. Eu acho ele até uma figura interessante. Mas o problema é: ele não é a tradução disso. Ele, esteticamente, não é. Assim, a gente está vivendo um tempo tão bizarro que a Manuela [d’Ávila] seria mais do que ele. Porque ela é mulher, ela tem um… Ele não. Ele tem a cara de Lula dos anos 80 que…

Entrevistadores: E ele emula o Lula em muitos casos, né?

Acácio Augusto: Então! Se bem que, aí, nisso eles estão igual. É que mesmo o Sanders… Isso é uma reflexão que eu deixaria para os meus amigos que são de esquerda e que são a fim disso aí: muitas vezes a esquerda é mais conservadora que a direita, dentro dos seus próprios ditames. Quer dizer, ela tem que se voltar a um velhinho simpático. E aí, a gente é tão colonizado que acha que o Podemos é uma grande experiência ou que o Sanders é uma grande experiência. Gente, Podemos é o PT dos anos 80. O Sanders é o [Eduardo] Suplicy deles [risos]. Vai tomar no cu! Quer dizer, para mim, que vi no movimento antiglobalização uma possibilidade de romper definitivamente com essa tradição governista, eu olho para esse recuo, onde inclusive sujeitos que eram muito mais radicais naquele momento, diante do que se chamou de “golpe” aí, recuaram ou trocaram de posição, tipo o Léo, eu falo: “Caralho, a gente fracassou muito!”. Porque a gente não conseguiu falar para essa gente. Eu, nesse sentido, sou meio Walter Benjamin: eu vejo uma grandeza no fracasso [risos]. Mas a gente fracassou porque a tradução [do] movimento antiglobalização, você não pode procurar ele ali, mas o problema é que tem gente que quer traduzir ele ali. Então, no fundo, eu acho que o Sanders, Podemos, ou mesmo o Tea Party, eles são a captura disso. A única semelhança que eles têm com essa (…) nova cultura política que o antiglobalização trouxe é que eles tentam traduzir, enquanto movimento, o que se chamou genericamente de crise da representação. Essa é a única semelhança. Por que quem é o antiglobalização hoje? (…) Quem eu olho com 18, 19, 20 anos e vejo o Acácio com 18, 19, 20 anos? Os secundaristas. Que é assim: “Mano, eu não tô nem aí”. A grande diferença é essa: tudo isso que eu falo hoje – “Ah, que a gente não estava a fim da esquerda do PT” – nada disso era elaborado. A gente simplesmente era. Ninguém era assim: “Ah, a gente está sendo isso, porque a gente não quer ser do PT”. Não! Era porque simplesmente nem eles suportavam a gente. A começar pelo fato de que a gente não tomava banho.

Entrevistadores: Tinha toda uma experiência estética olfativa. Acácio Augusto: Então, cara. Talvez o pessoal que era um pouquinho mais velho [tivesse isso mais claro]. Porque quando se tem 20, vinte e poucos anos, três ou quatro anos é muita diferença. Talvez o Edu Valladares, o Pablo, o Morel com certeza, e outras pessoas tinham isso mais claro. Mas para a molecada da minha idade para baixo… Em 20 de abril de 2001, eu tinha 20 anos. Eu ia fazer 21 só em setembro. (…) Tem essa ironia ainda: eu pesquiso segurança internacional em Relações Internacionais e faço aniversário dia 11 de setembro.

Entrevistadores: É mesmo?

Acácio Augusto: É. Então, no 26 de setembro de 2000, eu tinha acabado de fazer 20 anos. O que é muito doido, porque eu já me achava super adulto, mas eu era um moleque.

Entrevistadores: Mas quando você tem 20 anos, você se acha muito adulto.

Acácio Augusto: É. Eu era um moleque. Então, eu acho que, independente dos conteúdos, o que a AGP ofereceu para todo mundo, para quem de fato se jogou, participou das manifestações, foi uma experiência não mediada com o poder. Uma experiência direta. Você toma cacetada do [capitão da Polícia Militar Francisco] Rohrer, que era o chefe do [Batalhão de] Choque no A20, e é como se você lesse metade dessas coisas aqui de uma vez só [Acácio aponta para os livros na estante]. Você entende uma série de coisas ligadas. Isso fora que – ainda pensando na história do legado – todos os temas que hoje viraram inclusive temas mercadológicos, que a própria publicidade está incorporando, como feminismo e tal, eram moeda correntíssima entre a gente. As riot girls eram isso. A questão do machismo era colocada desde o Bulimia, que era uma banda de meninas lá de Brasília: “punk rock não é só pro seu namorado”. Então, no fundo, a AGP conseguiu muita coisa, mas mesmo que ela não tivesse conseguido nada, ela preparou todo mundo que hoje está discutindo isso, está falando sobre isso. E com naturalidade, não querendo se atualizar… E eu acho que tem uma coisa também: mesmo quem não era anarquista aprendeu que é importante ouvir as pessoas, mesmo que elas sejam mais novas, sem experiência. A AGP, independente das posições políticas, já tem um formato que não é esse formato rígido da organização política (…). Depois [isso] acabou virando quase um fetiche. O Rodrigo Nunes escreveu criticando isso. Eu discordo um pouco, porque eu acho que ele é um dos que vai reler criticamente o movimento antiglobalização para falar: “Oh, gente, a gente devia ter montado um partido”. Eu não acho que a gente devia ter montado um partido. Não acho mesmo. Essa coisa do fetiche da horizontalidade não era um fetiche, era real. Era uma experiência que, por exemplo, eu não teria na juventude de nenhum partido. Poder falar com os caras mais foda como se eu fosse um deles. E ter pequenas sensibilidades. A piada que eu contei, que acabou virando uma piada, mas que aconteceu, que o Eduardo me chama e fala: “Oh, não fala assim, não é assado”… Hoje em dia, eu participo de uma discussão em qualquer lugar, e eu jamais falei e nem falarei (espero) para o fulano assim: “Não, eu fiz um doutorado sobre isso”. Porque é uma coisa que lá também não existia. O cara era doutor, mestre, o outro era punk… E era uma coisa interessante que também não era uma equivalência. Porque, a não ser que você fosse um idiota, rapidamente você falava: “Ah, não, esse cara aqui sabe um pouco mais. Então, vou escutar um pouco”. A minha experiência, pelo menos, foi essa. Então, talvez confirmando que de fato se funda uma nova cultura política, quem soube aproveitar teve formação ali dentro. Eu, seguramente. Embora a maior parte da minha formação política e intelectual mais sólida eu tenha feito dentro do Nu-Sol, a AGP me deu essas primeiras experiências, que são muito marcantes. Tem um poeta francês chamado René Char, que fala que tudo aquilo que vai nos livrar da catástrofe – alguma coisa assim – se reúne nos nossos começos. Então, a AGP é uma experiência que eu, mesmo mentalmente, sempre volto. Porque isso te livra de dar uma palestra para a Polícia Militar do Rio de Janeiro e falar que os black bloc são fascistas, tipo a Marilena Chauí. (…) Eu não gosto da Marilena Chauí, mas independente de eu gostar ou não dela, quem tem experiência de partido, intelectual de partido, tem isso: ele vai lá dizer a verdade para alguém. E não diz. E aí, é nesse sentido que, de novo, [mesmo com] todas as críticas que eu tenho [ao Pablo], por achar que ele é um moderado, você vê que isso ele não faz. Eu nunca vi o Pablo fazendo isso e nem nos textos dele. Aliás, até quando ele é ingênuo na minha avaliação – aí é um juízo de valor, pode estar errado – em [falar] “Ah, não, todo mundo quer saúde e educação, vou falar com os caras”, no fundo, o que ele está falando é isso: “Olha, a gente precisa escutar as pessoas. Não pode simplesmente dizer que a gente tem uma teoria social que vai esclarecer todo mundo”. E, aí, quem pensa isso? O vanguardismo marxista. Porque, aí, mesmo os marxistas da AGP vão ser marxistas mais legais [risos] É! Vão ser os caras que vão ler o Maurício [Tragtenberg] (…). Bom, o Pablo é isso, em alguma medida. Quem é o grande marxista desses caras? Não é nem o [Claude] Lefort, (…) nem o [Edgar] Morin, que virou esotérico. É o [Cornelius] Castoriadis, que é um cara que está aí, sendo retomado pelo [Pierre] Dardot e [Christian] Laval. Então, eu acho que (…) [essa nova cultura política] apareceu, emergiu, em 94, com Chiapas; ganhou o mundo em 99, com Seattle, e produziu experiências n no mundo inteiro. Por isso que eu acho esse projeto da Leslie [Wood] animal. Eu tô interessadíssimo. Eu acho do caralho, porque eu fico pensando o que um cara que nem eu está falando na Bolívia, na Colômbia, no Uruguai. Então, [essa cultura política] fez isso, sofreu um baque muito forte com o 11 de setembro de 2001, com a repressão; perdeu o fôlego global nas manifestações contra [a Guerra d]o Iraque – o famoso clip do System of a Down, “Boom”, que lá tem um monte de coisa. Só que ali eu acho que teve uma lição importante, que no Brasil vai ser traduzido como MPL, que é: “ao invés de a gente buscar pautas globais, que dizem respeito a todo mundo, vamos partir de pautas locais, que a gente vai produzir uma coisa interessante”. Aí, a geração que é, mais ou menos, uma segunda geração [do antiglobalização] – que, na verdade, é a geração mais nova do que eu do antiglobalização, tipo o Legume – eles vão produzir uma coisa muito mais legal que a gente, eu acho, que é o MPL, que é o Junho de 2013. Hoje, eu, no lugar deles, ia estar muito puto. E mesmo não estando no lugar deles, eu fico muito puto, porque é impressionante como se conseguiu roubar isso deles. Porque isso é deles. Goste ou não, ache bom ou ruim, tenha críticas ou não aos efeitos, à reação a isso. Eu acho que o erro que muita gente tem é ler efeito como causa, ou reação como ação. Então, a direitona que apareceu na [Avenida] Paulista depois de 2013, aquilo lá é a reação se organizando ao que, de fato, tinha sido a ação. A ação é o MPL; a reação é a direitona. E o que os “Lula livre” da vida não entendem é que, naquele momento, eles deram a mão para a reação. E aí, ficam dizendo que a gente que é golpista. Não, senhor! Vocês deram a mão para a reação naquele momento. Deram a mão, o pé, o braço, por que o que eles fizeram? Eu até arriscaria dizer – numa leitura mais ao estilo [Ernesto] Laclau, Chantal Mouffe, que não é a minha, mas só fazendo um exercício intelectual aqui – que talvez se fosse o Lula, ele teria ido para a rua falar: “Vamo lá!”. É, ele teria botado a manifestação inteira do lado dele. É igual essa coisa dos caminhoneiros aí. Ele ia estar fazendo churrasco e tomando pinga com os caminhoneiros. Porque ele é essa figura folclórica da política brasileira. Mas, enfim, tem um lado que talvez seja até bom. Porque, no fundo, o que muita gente de uma leitura mais tradicional não entende por que o antiglobalização é tão importante, é justamente porque o antiglobalização não produziu um Lula. Não porque ele não foi capaz de produzir um Lula, porque desde o começo ele não queria produzir um Lula. Então, não existe. Por mais que você tenha figuras que ficaram mais conhecidas, os que se destacaram. Idem para 2013. Nem o Legume, nem a Mayara. Do mesmo jeito que no antiglobalização, nem o Pablo, nem o Léo, nem ninguém pode dizer que é a cara daquilo ali. E, aí, é nesse sentido que eu acho que o antiglobalização é o Maio de 68 da minha geração que não produziu um Daniel Cohn-Bendit também. Uma das críticas que eu tenho ao [David] Graeber é que ele quis ser o Cohn-Bendit do [antiglobalização]. Só que ele não conseguiu, porque ninguém dá crédito. Ninguém quer um Cohn-Bendit. Aliás, eu lembro das reuniões justamente isso: todos os que tentaram ter uma certa proeminência, de maneira intencional ou não – o Léo, em algum momento; o Edu, de uma outra forma; o Pablo, não sei se intencional ou não –, não deixaram. Falaram: “Cara, abaixa a bola aí. Abaixa a bola porque aqui não é assim que funciona”. Claro, eu acho que você não pode nunca desligar a luta dos trabalhadores do próprio desenvolvimento do capitalismo. E eu diria que a gente foi uma organização – uma organização é um modo de dizer, né? – mas foi um grupo com essa característica. Porque a própria característica do capitalismo hoje é assim. O trabalho hoje é assim. O que a esquerda tradicional não entendeu é que as empresas se democratizaram muito mais e muito antes que os sindicatos. E eles perderam o bonde mesmo. Perderam o bonde. Mas você também vai ter n leituras, e é engraçado que, dentro da tradição marxista, o único cara que vai ter uma leitura mais parecida com a minha é justamente o [John] Holloway, não no Mudar o mundo sem tomar o poder, mas no Fissurar o capitalismo. Porque, ao invés de ficar igual o Pablo, a Esther [Solano], falando que a direita é antipolítica, ele [Holloway] vai falar: “Nós temos que ser antipolíticos”. Ele tem um capítulo inteiro [sobre isso]. Embora o que ele entende por antipolítico é diferente do que eu entendo, mas é mais próximo. Porque eles vão dar isso para a direita de graça. A direita não é antipolítica. Ela é a pura política. O que a gente estava produzindo era antipolítica no [seguinte] sentido: a gente não quer uma nova política. A gente não quer nada disso. Nada, nada, nada, nada. Então, a gente não vai ter nem Daniel Cohn-Bendit, nem Lula, nem nada do que vocês quiseram. A gente vai ter grupos de pessoas. (…) Se Junho [de 2013] teve um efeito espetacular maior que o antiglobalização, o que ele teve de menor do que 99, 2000, 2001, foi que o número de grupos que surgiram da AGP foi gigantesco. Gigantesco. O próprio [Espaço] Ay Carmela, que você [Márcio] fez parte; o Espaço Impróprio; o CCS se reativou; o Germinal do Josimas; o Goulai Polé se reativou também, passou a ter gente. E aí, sei lá, n pequenos grupinhos… Que, no fundo, eu acho que Junho também produziu isso, a gente que não está sabendo. Os secundaristas mostraram um pouco isso aqui. Como éramos menos e todo mundo meio que se conhecia… E aí é impressionante como hoje a reação conseguiu cobrir tudo. Não tem um espaço aberto.

Entrevistadores: Quando você fala, hoje, de Bernie Sanders, Podemos, etc, você faz esses paralelos do Brasil com outras partes do mundo. Você acha que, na época da AGP, a rede contribuiu para estabelecer relações entre pessoas e coletivos aqui do Brasil com pessoas e coletivos de outros lugares? Como foi isso?

Acácio Augusto: Com certeza. Eu, particularmente, não. Mas um monte de gente sim.

Entrevistadores: Você sabe citar algum caso?

Acácio Augusto: O [José] Chrispiniano, quando escreve A guerrilha surreal, foi participar de uma coisa lá. O Brian, que acaba morto em Oaxaca, que era do CMI de Nova York, esteve aqui no Brasil. Os punks, o próprio Josimas, tinha contato com gente no mundo inteiro. Era uma coisa que tinha mais a ver com o punk, mas que pegou esse clima da época. O próprio Pablo tinha contato com um monte de gente, acho que na França, talvez. Também tinha isso: tinha um pessoal mais velho que aproveitava algumas redes que já existiam – fossem elas redes acadêmicas ou redes, por exemplo, como a do punk – e botavam isso para funcionar. Porque o próprio princípio era que a nossa revolta fosse tão global quanto o capital. Fora gente que veio do Canadá para cá. O próprio Fórum Social Mundial virou um fórum onde todo mundo se encontrava: gente de outros países da América Latina, gente da Espanha, do México, dos Estados Unidos, da Alemanha, da Índia. Então, sim. Nossa, fácil! Como na época eu não falava inglês e não tinha acesso à Internet em casa, eu não vivi muito isso. Mas eu lembro direto de gente que vinha. Mesmo na Verdurada. Também coincidiu com a época da estabilização econômica do Brasil, então isso facilitou para, por exemplo, trazer banda para cá. Então, tinha. A conexão era global, sim. Fácil, fácil. Aliás, talvez até muito mais orgânica do que é hoje, com troca mesmo. O próprio [Francis] Dupuis-Déri vem para cá na época. O Canadá e a Espanha eram talvez os lugares de onde mais vinha gente. Estou falando meio de chute, mas acho que sim.

Entrevistadores: Para além das manifestações, você lembra de iniciativas mais sustentadas? Por exemplo, um grupo no Brasil fazendo a mesma coisa que um grupo em outro país?

Acácio Augusto: O CMI, cara. No fundo, a AGP era uma organização internacional informal. Então, nas listas de e-mails, por exemplo, circulava muito material gringo. Toda experiência da Rise Up vai vir por aí. Então, você tem o pessoal que era mais ligado diretamente ao CMI, eles estavam em contato constante com gente de fora. E, ao fim e ao cabo, era isso: tudo bem, você perguntou para além das manifestações, tinha essa coordenação de ser no mesmo dia, mas criou uma cultura global sim. Nesse sentido, acho que o objetivo foi alcançado. Não sei em que medida isso é bom ou ruim, mas globalizou o protesto também. Tanto que, vamos dar um exemplo como o dos black blocs: se naquele momento a mídia, mesmo os especialistas, não sabiam dar esse nome para o que os punks faziam, hoje os caras deram muito fácil.

Entrevistadores: A tática estava lá, né?

Acácio Augusto: Muita coisa ali estava de uma maneira embrionária e, depois, apareceu. E isso tem a ver com essa conexão com os gringos, sim.

Entrevistadores: Como as questões de classe eram tratadas no contexto da AGP? Seja nos e-mails ou nas reuniões?

Acácio Augusto: Cara, tinha uma coisa que eu não gostava, e eu continuo não gostando muito, de em alguns momentos isso ser usado para, não sei se desqualificar… Porque no fundo, como eu já vinha também na experiência do punk, a AGP era um movimento, mais ou menos, de classe média, de estudante. Aí, tinha uma galera que tinha uma leitura mais tradicional, que botava uma questão classista. Mas não sei se em algum momento ela foi decisiva, não. Porque no fundo o que acabava sobressaindo era uma coisa muito ligada a estilo de vida. Então, muita discussão sobre…

Entrevistadores: Gênero?

Acácio Augusto: É, gênero, vegetarianismo… Eu, por exemplo, na época, era vegetariano. Fui vegetariano um tempão. E eu lembro claramente que o que me convenceu a ser vegetariano, por mais de meia década, não tinha nada a ver com nenhuma dó dos animaizinhos, porque eu gostava de carne, como eu gosto agora. Tinha a ver com: “Mano, eu não vou tomar Coca-Cola, eu não vou comer no McDonald’s, eu não vou sustentar a Monsanto”. Então, eu diria que existia, o debate tinha, mas ele não era tão relevante quanto a oposição que, de fato, queria se produzir, que era nós contra as corporações. O grande antagonismo, se é que se pode dizer assim, do movimento antiglobalização, era as pessoas contra as corporações. As comunidades locais contra as corporações. A vida de verdade contra a vida fake das marcas – todo mundo lia o No logo, da Naomi Klein. O Cercas e janelas. Então, era isso.

Entrevistadores: Você diria que isso é um outro reenquadramento da noção de luta de classe, como até alguns dizem que no Maio de 68 também havia?

Acácio Augusto: Eu não acho, cara. Sabe por que eu não acho? Porque talvez, daqui muito tempo, vai ser muito mais claro que quem fez esses movimentos é o análogo do que era a classe trabalhadora do século XIX. É o análogo, por isso que eu acho que não é a mesma coisa. Mas aí, talvez, eu falo “não acho” e vou falar uma coisa que talvez seja isso mesmo [risos]. Porque, quem somos nós que participamos disso e hoje somos professores universitários? Nenhum de nós, mesmo os que têm mais projeção, tipo o Pablo, ele não é o Maurício Tragtenberg, ele não é o Florestan Fernandes, ele não é o Fernando Henrique. Não. É trabalhador.

Entrevistadores: É peão.

Acácio Augusto: Dá aula, peão, forma, tal. Quer dizer, quem dá aula em [universidade] federal tem uma condição, digamos, mais privilegiada em vários sentidos, inclusive de estabilidade de emprego. Eu já trabalhei e tenho muito amigo que trabalha em [universidade] particular, e ali sim é tipo uma fábrica. Uma fábrica de produzir diploma. Foda. E que, talvez, infelizmente, vai pegar a gente em algum momento também. Porque, assim, qual é um tema muito importante do antiglobalização? É a questão ecológica, em suas várias vertentes. Então, se naquele momento do que se chamou de luta de classes, estava em jogo a emancipação humana, para a continuidade da própria espécie humana, vamos dizer assim, o que o movimento antiglobalização vai colocar é que ou é isso ou não vai ter nem planeta! Então, para efeitos didáticos, você pode até chamar isso de um novo enquadramento da luta de classes, mas eu não acho que é isso. E eu acho que Junho [de 2013] também não foi muito entendido por conta disso. Porque, quando você pega o contexto social e econômico de Junho, especificamente, pô, o Brasil estava voando, cara. Pleno emprego, tinha bolsa pra caralho, edital para todo mundo. Todo mundo não, nunca teve para todo mundo, mas a coisa estava… E o que aquelas pessoas estavam falando a partir da pauta específica da tarifa? “Cara, a gente está vivendo uma vida impossível! Vivendo a cidade impossível, vivendo a cidade insalubre, enlouquecedora”. Tanto é que como essas questões vão, digamos, se desdobrar para as gerações que vão vindo depois? Para o que eu chamo, hoje, dos novos acidentes de trabalho, que é depressão, síndrome do pânico, ansiedade. Os trabalhadores lá do século XIX, o que eles tinham? Perdiam um braço, ficavam com só nove dedos. Então, eu acredito que, apesar dos esforços e muitos deles muito bem feitos, muito louváveis, ainda está por se fazer um entendimento mesmo disso aí. Quer dizer, a trilogia do Negri foi um esforço importante. Eu gosto muito dos estudos sociológicos do Richard Day. Dardot e Laval estão escrevendo sobre isso também. Por exemplo, há dez anos a leitura do Foucault, do Deleuze não era tão ok quanto é hoje. Então, muita gente olhava torto, achava que era uma coisa universitária, e hoje em dia é vulgarizado pra caralho. Então, eu acho que, no fundo, se colocou uma nova forma de luta, e o que tem é uma disputa de interpretação. Uns vão resumir com a coisa do populismo (os 99% contra o 1%). Eu, particularmente, prefiro pensar que é uma necessidade urgente de atomização mesmo. Não se trata mais de disputar hegemonia de nada. Se trata de destruir a própria ideia de hegemonia. Não se trata de derrubar a velha hegemonia para construir uma nova hegemonia. Se trata de destruir a própria ideia de hegemonia. O que o microcosmo da AGP produzia era o quê? “Tudo bem, você pode ser trotskista, você pode ser anarquista, você pode ser ecologista, mas como que a gente vai viver sem eu ter que aderir a você, sem você ter que aderir a mim?” E, claro, sociologicamente falando, a frequência de classe era bem heterogênea. Claro, do ponto de vista material, talvez um sujeito como eu, como o Téo, que eram filhos de trabalhadores, que foram a primeira geração a frequentar a universidade, somos um limite ali, porque exigia um certo repertório para você participar daquilo ali. Mas era bem democrático, no sentido mais amplo da palavra. E nem tinha uma classe que seria protagonista dessa história. Não à toa, a tentativa de teorizar isso vai levar ao conceito de multidão, por exemplo, que é um conceito meio frouxão para poder falar isso.

Entrevistadores: Aproveitando que a gente está falando de conceito, como você define ou o que você entende por autonomismo?

Acácio Augusto: Eu acho que o movimento antiglobalização fundou uma nova compreensão disso. Isso, com certeza. Eu, particularmente, não gostava. Eu achava que autonomismo era tipo quando a gente era punk, que tinha os caras que eram ganguistas, os caras que eram anarcopunks e os caras que eram independentes – e a gente costumava dizer que quem era independente era sinônimo de pilantra. Era um cara que não queria se comprometer e dizia que era independente. O autonomismo, de alguma maneira, criou esse safety place para muita gente. O cara não queria assumir a responsa de dizer que era anarquista ou trotskista, ele falava que era autonomista. Mas, dito isso, você pode fazer essa crítica mais dura, como eu fiz agora, mas também dá para pensar que o autonomismo era uma maneira de as pessoas se aproximarem sem ter que pagar pedágio para ninguém. Então, “eu sou autônomo”. Tipo: “pronto”. Claro que, aí, tudo isso vai demandar, como quase tudo, uma volta na História. Então, não é à toa que um dos principais sujeitos que vai teorizar sobre isso, que é o Negri, vem do autonomismo italiano. Hoje, passado já algum tempo, a galera vai ler Castoriadis, vai ler o Marcello Tarì, o próprio [Maurizio] Lazzarato começa a ser lido. Mas eu acho que é isso: o autonomismo, para mim, é sinônimo do jovem urbano anticapitalista. Pronto.

Entrevistadores: Complementando o que você falou antes, você diria que é um esforço anti-hegemônico?

Acácio Augusto: Ah, sim.

Entrevistadores: Na medida em que você tenta abrir o leque, sem o cara falar “eu sou isso, eu sou aquilo”?

Acácio Augusto: Eu acho que sim. Mas, olha, eu não tinha pensado nisso. Eu acho que é uma boa definição: é o jovem urbano anticapitalista. Ele é isso que se chama de autonomista. Por exemplo, os gregos usam menos, o mais comum nos panfletos gregos que eu li é antiautoritário, mas é um sinônimo. E aí, dá essa disputa. Há quem vá ver isso como uma espécie de anarquismo do século XXI, tipo o Saul Newman, que vai falar: “Olha, eles não são anarquistas, mas você olha direito o que eles falam e o que eles fazem, eles estão no campo do que se podia entender largamente como anarquismo”.

Entrevistadores: O próprio Graeber defende um pouco essa tese, né?

Acácio Augusto: É, o famoso artigo dele na New Left Review: “Os novos anarquistas”. Mas aí eu acho que ele força a barra com as pessoas, porque, no fundo, a grande maioria sabe o que é anarquismo e não quer se dizer anarquista. Eu sou meio antropólogo, e aí é que está: existe um conceito histórico e político do que é autonomismo. O conceito histórico e político está lá na Itália e está no Castoriadis. Isso é autonomismo. Se você trata – para usar um jargão antropológico – autonomismo como um conceito nativo, quer dizer, um conceito que a própria pessoa se dá, é esse cara: esse jovem urbano anticapitalista, ele é autonomista. Porque ele se interessa por várias coisas. E, por exemplo, ele é antipartidário, mas ele pode votar. [Isso] cria um lugar menos rígido para o sujeito – o que pode ser muito bom ou pode ser muito ruim, sem juízo de valor. Mas eu acho que é isso que se chama de autonomismo. E por isso que essa definição “jovem urbano anticapitalista” é boa, porque garante o cara viver a experiência e, de repente, depois, sei lá, se identificar mais fortemente, seja com partido de esquerda, seja com o anarquismo propriamente dito. Porque não tem como fugir que algumas cristalizações vão ser produzidas daí. Não dá para você ser a vida inteira um black bloc de manifestação. Seu corpo não aguenta. É uma limitação física que a pessoa tem [risos].

Entrevistadores: [Márcio]: Mas é todo um flanco que mantém um espaço do campo progressista, né? Eu não vi gente de direita falando que é autonomista. Apesar que eu acho que não demora… [risos]

Acácio Augusto: Cara, olha, eu não chamaria de progressista. Eu vou insistir. Eu nunca tinha usado isso, foi a conversa. Vou insistir no caráter anticapitalista. Acho que o corte é esse. Aliás, o corte da AGP era esse. Por exemplo: eu lembro de ter existido uma longa discussão quando um cara da ATTAC falou na PUC, que era assim: “Ah, ele não é. Ele não é”. Porque o mínimo denominador comum nosso é o anticapitalismo. Aliás, se você ler o texto que a AGP assinou no primeiro Fórum Social Mundial, naquele material que eu te dei, a grande crítica ao Fórum é: “um outro mundo é possível só com o fim do capitalismo”. Era o complemento que a gente cobrava do fórum.

Entrevistadores: E é interessante como o termo anticapitalista surge em oposição a, sei lá, comunista ou socialista.

Acácio Augusto: Isso.

Entrevistadores: [Bruno]: Uma tentativa também de superar essas compartimentações, né?

Entrevistadores: [Márcio]: De mostrar que é outra coisa.

Acácio Augusto: Aquele livrinho que saiu na Coleção Baderna, da Conrad, do [André] Ryoki com o Pablo Ortellado, Estamos vencendo, fala sobre isso e eu acho que ele fala acertadamente. Porque a ideia de autonomismo dá a liberdade, por exemplo, para um ecologista que milita em alguma ONG, tipo o Greenpeace, de dizer: “Ok, eu faço um trabalho no Greenpeace, mas eu sou anticapitalista ainda que o Greenpeace não seja”. Então, eu acho que até movimentos de direita, ou até o que se chama de progressismo, pode até lançar mão do repertório desses grupos, mas ele deixa de ser isso a partir do momento em que ele não tem no horizonte da ação o fim do capitalismo. E é uma coisa muito interessante porque todo mundo lembra, por conta do sucesso, da tese do fim da História, [do Francis Fukuyama], só que, no mesmo momento em que o Fukuyama estava escrevendo isso, um anarquista estadunidense, o Theodore Kaczynski, o Unabomber, cunhou a frase que depois ficou famosa pelo [Slavoj] Žižek e pelo Mark Fisher, que é: “Hoje, a humanidade é capaz de pensar no fim do mundo e não no fim do capitalismo”. O que o movimento antiglobalização falou foi: “Não, o fim do capitalismo é um horizonte”. É um horizonte. Não sei se a gente vai acabar com o capitalismo, mas a gente vai viver contra o capitalismo a vida inteira. Então, pequenas ações, do tipo virar vegano, criar cooperativas, tentar criar um site de notícias não ligado às grandes corporações, podem ser vistas como ações pueris, menores, mas do ponto vista ético e estético de quem se identificava com o movimento antiglobalização, são fundamentais. Eu até concordo que, por exemplo, grupos como o MBL [Movimento Brasil Livre] se valeram das táticas do autonomismo. Sim, só que eles não podem se dizer isso na medida em que eles não são anticapitalistas.

Entrevistadores: Na sua concepção, então, por outro lado, não é uma coisa que se reduz ao autonomismo italiano ou ao autonomismo francês?

Acácio Augusto: Não. Não mesmo. Até porque, como o anticapitalismo era o mínimo denominador comum, e talvez por isso sujeitos como o Graeber vão forçar e falar que eles [os autonomistas] são os novos anarquistas, também passa a se entender, no contexto de um capitalismo globalizado, que não dá para pensar o fim do capitalismo sem pensar o fim do Estado. Quando você pensa mesmo em sujeitos que vêm de uma tradição marxista mais rígida – imagina o Holloway, ele é tipo Escola de Frankfurt, é marxismo durão, ele nem é esse marxismo mais híbrido, e ele vai dizer exatamente isso: “Olha, cara, chegou-se a essa conclusão que o mercado é global e as agências locais do mercado são esses aparatos políticos chamados Estado”. Então, todo o processo, seja de minimização dos efeitos do capitalismo sobre os cidadãos nacionais, que é o welfare state; seja a possibilidade de tomada da superestrutura para alteração da infraestrutura social e econômica, em vistas do definhamento do Estado, que é a tese leninista; o século XX nos mostrou que nem uma nem outra [dessas alternativas] são possíveis. Então, eu costumo dizer, diferente do Graeber, que isso não faz das pessoas anarquistas. Isso só faz dos anarquistas os donos da tese que venceu, pelo menos. Quer dizer, o que o século XX vai mostrar é que os anarquistas estavam certos. Claro que não integralmente. Porque isso é uma coisa foda das pessoas, principalmente de militante: podia ser o maior gênio do mundo, mas se ele escreveu em 1870, ele não vai responder para o mundo de hoje. Seja ele o Marx, seja o Bakunin, seja o Proudhon, seja quem for. Mas sim, num campo mais geral, o anticapitalismo contemporâneo leva a um antiestatismo ou a uma visão mais pragmática, que eu poderia até chamar de derrotista, que é: “Olha, não dá. Vamos ter que combinar aqui as coisas”. Que eu acho que é um pouco o argumento do Rodrigo Nunes, e é onde eu discordo. Ele fala: “Tudo bem, sei lá, você quer justificar aí como você vai… você justifica”. O autonomismo deu essa possibilidade, porque pensar a existência pessoal passou a ser importante e, aí, é nesse sentido que você não se pensa como classe, você se pensa como um indivíduo que atua e que sua atuação tem sentido, ainda que mínimo.

Entrevistadores: Você falou do processo de como as pessoas foram se desconectando um pouco da AGP. Pela sua experiência pessoal, você diria que teve um momento em que a AGP acabou?

Acácio Augusto: Cara, eu acho que, do mesmo jeito que a AGP não tem um ato de fundação, ela não teve um ato de fim. Em algum momento ela acabou mesmo. Mas ela acabou a partir do momento que as pessoas que faziam parte dela acharam outras coisas que fazer. Porque o mais interessante é notar que, independente do que as pessoas acabaram fazendo das próprias vidas, ninguém saiu muito, ninguém orbitou muito longe dessa crítica ao sistema. Ainda que o anticapitalismo seja mais ou menos radical, que o antiestatismo seja mais ou menos radical, todo mundo, pelo menos quem eu conheço, está aí nesse campo. Está aí em alguma organização, em algum partido, em algum grupo, em alguma associação, produzindo crítica ao sistema, e uma crítica que não se preocupa muito em estar alinhada com A ou com B. Isso faz com que, às vezes, até pessoas sofram um pouco com isso, mas não tem ato de fim. Eu acho que não. Se quiser se colocar, talvez seja esse ato contra a Guerra no Iraque, talvez a última grande aparição. Assim, digamos que o grosso de quem continuou fazendo – eu, na época, já estava meio afastado, embora tenha ido na manifestação – direcionou os esforços para coisas como o MPL, por exemplo, ou se concentrou mais no CMI.

Entrevistadores: O pessoal do MPL participava das reuniões da AGP? Você lembra disso?

Acácio Augusto: Não lembro. Eu não lembro mesmo. Porque o MPL é 2005, né?

Entrevistadores: É, 2005.

Acácio Augusto: Então, aí, eu já estou enfiado na PUC. 2005 eu estou no último ano da graduação, estudando para o mestrado. Já não estou ligando mais muito para isso aí. Mas eu acredito que sim, sei lá.

Entrevistadores: Na sua opinião, o que a AGP fez de melhor?

Acácio Augusto: Cara, talvez fundar isso aí. Foi abrir esse campo, essa cultura política nova; criar condições para as pessoas existirem politicamente sem estarem vinculadas a nenhuma organização oficial da esquerda até então existente. Acho que é isso.

Entrevistadores: Quais foram os principais desafios que a AGP enfrentou, na sua opinião?

Acácio Augusto: Eu acho que o principal desafio foi existir. Por exemplo: ela precisava de lugar cedido por algum outro grupo que integrava ela para fazer uma reunião. Então, acho que, primeiro, o principal [desafio] foi existir regularmente, porque não tinha um lugar. E o segundo [desafio] foi enfrentar a própria repressão, que foi foda. Se bem que a ousadia era muito grande. Por exemplo, o Rohrer, que foi o comandante da Tropa de Choque que reprimiu o A20, a gente impediu que ele defendesse o mestrado dele lá na PUC. Jogaram bolo na cara dele. Ele acabou defendendo o mestrado na Psicologia Social da PUC meio escondido lá no campus de Barueri, porque ele tentou defender umas duas, três vezes [no campus da Rua Monte Alegre]. Nesses [atos] eu estava, em todos. E foi muito louco, porque ninguém fez nada. A única vez que alguém fez algum coisa foi o Parafuso, que deu uma bolada na cara dele, acho que na segunda vez que ele tentou defender. Mas a gente só foi assistir à defesa, como é uma defesa de mestrado: é um ato público que qualquer pessoa pode ver. Só que aí eles suspenderam, aí foi por conta deles. Mas o segundo desafio [enfrentado pela AGP] foi a repressão.

Entrevistadores: E quais foram as maiores fraquezas da AGP, na sua opinião? Tipo, os desafios internos, digamos assim?

Acácio Augusto: Não sei, cara. Como eu não acompanhei muito de perto o fim, digamos assim, não saberia dizer. Porque, no tempo que eu frequentei, o que poderia se ver como fraqueza eu via como força, que era a capacidade de combinar pessoas muito diferentes. Não dá para dizer que teve fraqueza, porque eu acho que ela cumpriu o papel que ela tinha que cumprir. E aí deixou o melhor dela com cada um que participou para fazer o que quisesse. Do mesmo jeito que não teve um ato de fundação e nem um ato de encerramento, também não teve nenhum processo de filiação nem de expulsão. Então, ela é muito característica da sociedade contemporânea mesmo. Para pegar as características que o Deleuze dá ao que ele chama de sociedade de controle: não tem começo, meio e fim; é sempre inacabado; muito conectado com as novas tecnologias. Ela [a AGP] tem tudo isso. Então, talvez para responder, eu diria que tudo que foi a força dela foi também a fraqueza. Porque a dificuldade de fazer com que um grupo com essas características perdure é muito grande. Então, aí fica difícil ela ter durado mesmo. Eu diria que ela jamais duraria. Justamente por isso.

Entrevistadores: Você já falou um pouco disso, mas só para a gente formular explicitamente: na sua opinião, a AGP deixou um legado? E, se deixou, qual foi esse legado?

Acácio Augusto: Deixou. Bom, como eu já falei um monte, eu vou ser bem curto. Ela deixou um legado. O legado da AGP chama Junho de 2013. Ponto. É isso. Junho só existe porque existiu um movimento antiglobalização. E, claro, não à toa, muita gente que estava envolvida diretamente com [os atos] de Junho… Eu falei, cara, é muito doido: no dia da depredação da Prefeitura [de São Paulo, em Junho de 2013], eu encontrei o Ariel, o Taiguara e o Flavião lá.

Entrevistadores: O Ariel estava lá?

Acácio Augusto: Estava. Ele e a mulher dele. Meio perdidão assim. Eu falei “Há quanto tempo que eu não te vejo em uma manifestação, Ariel!”. E ele falou: “É, eu vim”.

Entrevistadores: Isso é muito maluco. Bem aquilo que você fala: é como se as pessoas que estivessem lá releram aquela gramática, que está aqui, agora, de novo.

Acácio Augusto: É. E eu, por conta dessa coisa de eu ter me dedicado muito à vida universitária, e também porque as pessoas, cada um foi fazer uma coisa da vida, de Junho [de 2013] para cá, eu retomei o contado com quase todas essas pessoas. Por conta de Junho. Com o Taiguara mesmo, que era meu amigo de infância e estava fazendo outras coisas. A ponto de, depois de Junho [de 2013], eu passar a escrever no Passa Palavra. Quer dizer, não escrever regularmente, mas mandar texto para eles. Então, é isso: Junho é o antiglobalização; o antiglobalização é Junho. E agora eu estou esperando 2023 para ver. Dá 10 anos certinho para ver essa história de novo. Porque os acontecimentos da História que realmente provocam abalos escapam à ciência da História. É o que o Nietzsche chamava de intempestivo, que o Deleuze retoma para falar do Maio de 68. E é o que foi o antiglobalização, e o que, de alguma maneira foi Junho, sabe? Eu acho que Junho para mim não é um novo antiglobalização. Junho ainda é o antiglobalização.

Entrevistadores: Ah é? Você vê um grande ciclo?

Acácio Augusto: Eu vejo. Eu acho que ainda é. Cara, quem explicou Junho para a imprensa?

Entrevistadores: O Pablo.

Acácio Augusto: Pois é. Então, mano, é isso.

Entrevistadores: E Primavera Árabe, você coloca nesse diapasão?

Acácio Augusto: É, tem tudo a ver, claro. Cara, assim, guardados todos os efeitos negativos, quem fez a Primavera Árabe, quem fez o Occupy Wall Street? Jovens urbanos anticapitalistas. Talvez o que a gente precisa pensar, elaborar, analisar, é o que teve de captura e o que teve de avanço. Mas, se no antiglobalização o Pablo estava com uma galera montando o CMI, em junho [de 2013] ele estava escrevendo na Folha. Quer dizer, em junho ele ainda não estava, mas… Então, é como se tudo que tinha sido plantado ali [no antiglobalização] floresceu, amadureceu, mostrou a cara. Porque é claro: eu acho que tudo que aconteceu lá vale por si. Ponto. Só que a gente foi de 500 pessoas no A20 – sei lá se tinha mais que isso, mil, no máximo – para 500 mil, um milhão [em Junho de 2013]. A cultura política que existia naquele momento não produziria Junho. A cultura política que produziu Junho é a cultura política do antiglobalização. É faixona na frente, faixona atrás, black bloc, batuque. Cara, se você chamar um leigo e botar uma foto de um ato do MPL e uma foto do A20, o cara vai falar: “É o mesmo ato” ou “Foi a mesma organização que fez esse ato”. E aí qual é a diferença? Não é uma organização. Não é um grupo. É um estilo. É um modo de fazer. Sei lá, é difícil de explicar.

Entrevistadores: E respondendo a problemas também que são, não os mesmos, mas semelhantes. Problemas de representação, efeitos da política neoliberal na cidade.

Acácio Augusto: Sim. Talvez a única diferença, que foi o que eu falei que é um ganho, é: a gente saiu de uma pauta que soava abstrata para a maioria da população, que era a ALCA, o FMI, para uma pauta que qualquer Zé sabe: “Oh, mano, é o busão que você paga todo dia”. E aí, por exemplo, o pessoal que vem de uma tradição mais marxista… Vou ser nominal: o Legume acha que isso é um ganho no sentido que, quando você fala da tarifa, você começa a falar mais diretamente para a classe trabalhadora, que é coisa que o antiglobalização não falava. Eu diria que ele tem razão. Embora a minha leitura tenha outras nuances, é isso. Cara, você ia bater lá na porta do cara: “Oh, vamos lutar contra a ALCA”. Aí, antes do cara falar sim ou não, você tinha que dar uma aula sobre a ALCA para ele. Aí você fala para o cara: “Oh, meu, vai pegar no seu bolso o aumento da passagem”. Eu tenho um ódio de quem fala “não é só por 20 centavos”. Tenho um ódio. Porque era. E a potência dessa porra está nisso. Está em dizer “é 20 centavos”. Em um tempo onde o capitalismo tomou conta de tudo, [tocando] qualquer ponto você consegue também tocar tudo. De novo: a força dele é a fragilidade dele. Então, se o capitalismo tomou conta de tudo, a tarifa pode derrubar o capitalismo. Derrubar a tarifa pode derrubar o capitalismo.

Entrevistadores: A contradição está em todo lugar, né?

Acácio Augusto: Eu fui um pouco arrogante [risos] Por que, por exemplo, a principal tática do MPL é uma tática do antiglobalização, que é formar uma manifestação de rua na qual eles querem perder o controle. A gente não conseguiu. Eles conseguiram. E aí gerou Junho.

Entrevistadores: Bom, acho que é isso. Vamos parar de te importunar.

Acácio Augusto: Importunar não. Cara, foi um barato falar.

Entrevistadores: E esse esforço de… Isso é cansativo.

Acácio Augusto: Isso é cansativo, mas, cara, foi legal. Nunca tinha feito essa reflexão assim.

Entrevistadores: Que legal! Só por último, Acácio: tem alguma coisa que você queria colocar que a gente não perguntou?

Acácio Augusto: Não, tá legal, tá bom.